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Congresso em Foco
02/07/2008 | Atualizado às 18h21
Lúcio Lambranho
Enviado especial a Corrente (PI) e Avelino Lopes (PI)
Neisandro desmaiou com a pancada. Quando conseguiu abrir os olhos, viu o irmão morto embaixo das sacas de feijão. Minutos antes de o caminhão capotar três vezes enquanto despencava no buraco de 15 metros de "fundura", ele contrariara o irmão mais velho.
Havia sentado em outro canto da carroceria do pau-de-arara. Ouvia rádio com o amigo Edvan quando a montanha de feijão soterrou o lugar onde havia deixado Delson, seu irmão, um pouco antes do início do segundo ato dessa tragédia.
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"Foi Deus quem me ajudou", afirma Neisandro quando explica o episódio. Mais de 12 anos depois, ainda sente fortes dores no peito e na perna esquerda, enfermidades que tiraram o rapaz do serviço pesado na roça. Precisa ir para a cama quando faz esforço e não agüenta mais ficar na lida nem por poucas horas. |
Justamente porque precisavam botar o dinheiro da comida em casa que Neisandro, o irmão e outros 77 trabalhadores rurais da região foram parar na Fazenda Porto Alegre, em Bom Jesus da Lapa, Bahia, distante quase 500 quilômetros de suas famílias. Eles saíram com esse destino 40 dias antes de o caminhão tombar.
Na fazenda, o primeiro ato da tragédia ainda atual de suas vidas: passaram fome e frio sob as barracas de lona e, durante um mês e dez dias, não puderam sair do mato. Volta e meia, os seguranças atiravam perto da barraca para mostrar quem mandava.
O isolamento da cidade, perdida a mais de 15 quilômetros, e o medo prenderam todos na lama do lugar. Ninguém tentou fugir, apesar da vontade e das humilhações diárias a que eram submetidos.
Também não havia nenhum equipamento de proteção para lidar com a cata do feijão, tarefa para a qual haviam sido contratados. Trabalhavam descalços, mesmo com as cobras cascavéis que rondavam o acampamento.
Quase sempre sob sol forte, eles catavam pelo menos um hectare do legume por dia, mas só podiam comer arroz e esse mesmo feijão que colhiam. A mistura só tinha sal e óleo de soja. A comida saía da saca suja direto para a panela.
Na venda da fazenda, tinha do "bom e do melhor", mas era caro demais para o bolso deles. Quem se arriscasse a comprar qualquer coisa corria o risco de voltar para casa sem nada ou devendo, e, certamente, seria obrigado a ficar mais tempo até pagar a servidão por dívidas imposta pelo patrão. Para completar o desespero de todos, a água de beber era a de um canal do Rio São Francisco, o mesmo que eles usavam também como banheiro.
Barra da saia
Franzino e com apenas 13 anos na época, Neisandro Batista do Lago pegou o caminhão da agonia, tamanha a situação precária da família, para trabalhar na Bahia junto com o irmão, Delson Júnior Batista de Souza, morto aos 22 anos, soterrado pelas sacas de feijão que ambos haviam ajudado a colher.
Fotos: Lúcio Lambranho/Congresso em Foco
Luziano, também filho de seu Nestor (foto), quase foi junto. A mãe Caetana teve que brigar para segurar o filho pequeno em casa. Ainda hoje, ela se lembra, com os olhos cheios d'água, da luta que salvou o garoto do acidente e da escravidão na fazenda.
Dona Caetana foi xingada pelo aliciador contratado pelo capataz da fazenda. O "gato" - nome dado pra quem leva gente, principalmente do Norte e do Nordeste, para trabalhar em condição semelhante à de escravidão em fazendas Brasil afora - disse: "Esse menino já não precisa mais da barra da saia da mãe".
O filho de dona Caetana tinha só dez anos. Os "gatos", ainda hoje, aplicam a lei da demanda de braços baratos para a colheita ou plantio em meio à miséria de quem não tem o que comer nessa região do Piauí.
Carga cruel
Da volta para casa, além das barrigas vazias e da frustração, a maioria dos trabalhadores não levava praticamente nada. Menos de dois meses antes, o prometido era outro: comida por conta do patrão e oferta de dias melhores. Mas ficou só na promessa.
Sob a poeira do sertão baiano, 79 trabalhadores subiram no caminhão que os devolveria aos municípios de Corrente e Avelino Lopes, também no sul do Piauí, em 22 de outubro de 1995, data em que o sofrimento dobrado bateu na porta de suas famílias, marcadas ainda hoje pelo aliciamento de trabalhadores escravos.
Entre os que sobreviveram para contar essa história, persistem relatos a respeito de "gatos" que continuam, quase 13 anos depois, a rondar e a cooptar para o mesmo drama os mais pobres das duas cidades.
Voltando ao fatídico dia: só depois de carregar umas 20 sacas de feijão para dentro do caminhão amarelo, os trabalhadores puderam subir na carroceria, onde tiveram de se acomodar, acocorados, em cima da carga.
Em Barreiras, 262 quilômetros depois, foram obrigados a carregar mais sacas e ganharam, na soma dos dois embarques, a companhia de 105 fardos de 60 quilos de feijão.
Lá pelas 2h30min da madrugada, uma subida na BR-135, na altura de Rochedo, localidade de Formosa do Rio Preto (BA), venceu o motorista, Pedro Gonçalves de Araújo.
Ele tentou engatar uma marcha mais forte para subir o trecho íngreme por duas vezes, mas não conseguiu. O câmbio quebrou e, sem que os freios dessem mais conta do peso excessivo, o caminhão caiu para trás no vazio. Apenas 12 metros separavam o ponto onde Pedro perdeu o controle das marchas e a entrada do precipício.
Rio de sangue
Morreram 14 catadores de feijão, a maioria de politraumatismo ou traumatismos de tórax, crânio e face. O buraco era uma armadilha para qualquer carro que caísse na estrada, naquela época, de chão batido. Mas a carga, que seria vendida em Corrente, misturada com gente, foi ainda mais cruel para os catadores de feijão.
Quinze pessoas ficaram com lesões graves, grande parte delas não consegue mais trabalhar ou não dispõe mais das mesmas condições de trabalho de antes.
No boletim de ocorrência da polícia baiana, as sacas de feijão foram descritas e quantificadas precisamente no papel antes da contagem dos mortos e dos feridos.
Ao contrário da precisão dada para a carga, erros de datilografia nos nomes e nas idades das vítimas ainda atormentam a vida das famílias. Elas precisam ter paciência diante da burocracia cada vez que vão retirar novos documentos e se batem com os dados errados grafados pela polícia.
No acanhado posto de saúde, hoje um hospital, em Formosa do Rio Preto, os médicos não tinham muito o que fazer para salvar os feridos mais graves. Não se sabe quantos dos 14 mortos perderam suas vidas no local da queda ou depois do atendimento improvisado.
Por isso, o acidente também marcou Walter Oliveira, um dos médicos convocados para atender os feridos graves. "Foi muito ruim, pois como médico sabia que podia ajudar, mas não havia o equipamento necessário. Hoje pos
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