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Direitos humanos
Congresso em Foco
28/05/2023 | Atualizado às 08h20
Qual foi a sensação do Pedro, como pessoa, ao ouvir esses relatos de outras pessoas que, em busca de acolhimento religiosos, acabaram sendo violentadas? Mesmo com meu trabalho, também foi particularmente difícil trabalhar com essas pessoas. Como médico especializado em psiquiatria para crianças e adolescentes, estou acostumado a ouvi-los, e aí, a situação de abusos pelos quais elas passaram, ou estão a passar, foi há pouco tempo. Mesmo como médico, foi muito difícil ouvir adultos vítimas de abuso quando eram crianças. Por vezes, sentíamos que aquele adulto que estava ali na nossa frente era, na verdade, aquela criança que estava a descrever. E, sobretudo, sentíamos que aquilo que ocorreu há dez, 20 anos, nos impedia de agir no aqui e agora. Só podíamos ampará-los no sofrimento do momento e ajudar aquela pessoa a prosseguir para além dele. A outra questão é que, claro que a maioria das pessoas que respondeu a nosso estudo se colocava como católicas e praticantes e, portanto, mesmo em crianças, com seus pais e família, partiam de uma situação de confiança redobrada face àqueles adultos que representavam ou representam a figura de Deus. São todas as questões que a Igreja Católica considera como inequívocas e que eram colocadas à prova. A noção de medo, de vergonha e de culpa era remitida à própria criança. Isso tudo gerou um forte silenciamento que favorecia não só a punição como também a continuidade. Na nossa amostra, e não só na nossa amostra, a maior parte dos abusos foi múltiplo e forma mantidos por muitos anos.Mantidos com o apoio do Estado? E de que forma o Estado tem responsabilidade sobre essas vítimas? Tem sim responsabilidade, e vimos isso no nosso estudo, que decidimos delimitar de 1950 a 2022. Em Portugal, até 1985, não havia crime de abuso sexual. Só em 1990 Portugal ratifica a Carta dos Direitos da Criança da ONU e aí muda de fato a legislação. E muda consideravelmente em 2007, quando os crimes de abuso sexual de crianças passam a serem crimes públicos, permitindo que uma pessoa que tenha conhecimento pode denunciar. Essa, sem dúvida, foi uma grande mudança.
Mesmo com essa alteração na lei, sabe-se que o religioso acaba tendo uma proteção da Igreja. Como muda-se isso? Com a incidência moral sobre as pessoas. Por isso insistimos que, mesmo que em grande parte dos casos não haja prova jurídica no tribunal, a Igreja deve recorrer ao livro do Direito Canônico. Pelo Direito Canônico a igreja pode suspender, inibir aquele padre de estar com crianças, de atuar em determinadas funções. A Igreja precisa ter coragem para perceber que, se não o fizer, quanto mais fugir e esconder esse tema, mais violência irá existir e mais será uma fonte futura de descredibilização da Igreja. A maior parte das pessoas que fazem parte do nosso relatório deixou de ter práticas religiosas e mais, fizeram o que chamamos de transferência transgeracional, em que não batizam os filhos, não deixam eles irem para a catequese.
O Pedro é católico? Acredita na Igreja Católica? Essa é das coisas que mais me perguntam. Eu cresci numa escola católica, mas fiz o restante da minha formação em escola pública. Como costumo dizer, eu sinto a Igreja Católica de uma maneira muito especial. Vejo a mensagem católica nas pessoas, sobretudo nas que sinto que são as mais frágeis, as mais esquecidas, as mais doentes. É nelas que vejo, entre aspas, o meu "Deus". Isso para justificar que não sou uma pessoa que vá à missa, que pratique atos religiosos.
No período dos trabalhos da comissão, vocês receberam relatos de pessoas de diversos países, inclusive das Américas. Alguma denúncia vinda do Brasil? Não. Tivemos dos Estados Unidos, do México, do Canadá. Depois tivemos do continente africano, dos países baixos. [caption id="attachment_570197" align="alignright" width="376"]O Papa Francisco tem feito um movimento que já resultou em mudanças no Código Canônico, mas sabemos que esses avanços ainda são poucos perto do que deve ser feito. A Igreja Católica ainda considera como punição um afastamento das atividades religiosas, mas uma punição como se espera da justiça em caso de violação sexual não ocorre. Isso foi das coisas que colocamos no relatório final. É dever moral da igreja colaborar com as autoridades judiciais e não esconder se tiver conhecimento de casos. Durante anos a prática comum da igreja era ocultar a situação e nos casos mais intensos era simplesmente mudar de paróquia, nem sequer afastavam.Isso continua acontecendo aqui? Esperamos que menos, mas durante anos foi a prática comum da Igreja. Essa engrenagem de proteção da igreja católica ajudou na violação sexual de crianças e adolescentes em todo o mundo? Sim, sem dúvida. Por isso não surpreende que tenha havido espécie de paraísos, tal como os paraísos econômicos, como o Haiti, onde essas pessoas iam viver sem nenhuma punição.
De que forma partidos políticos com características conservadores, como é o Caso do CHEGA em Portugal, e do PL no Brasil, podem prejudicar ações de combate às violações, já que, por exemplo, são contrários à educação sexual nas escolas? Eles (partidos) não permitem que haja uma verdadeira igualdade entre homens e mulheres, ou são contra a homossexualidade. Todos esses fatores de repressão vão no fundo prejudicar e colocar o problema embaixo do tapete. Uma das nossas situações mais públicas, e talvez mais escandalosas, foi o de um padre confessor aqui de Lisboa, que era o orientador do líder do CHEGA. Ele foi suspenso das funções pela Igreja Católica. Parece uma contradição.O senhor fala do deputado André Ventura. O padre confessor dele é um pedófilo? Sim, e foi suspenso e por enquanto não sabemos onde ele está. Esses muito extremistas fazem uma narrativa destorcida do que interessa à sociedade e por vezes as pessoas confundem sexualidade com pornografia. Uma sexualidade bem vivida e bem resolvida é não só algo natural quanto saudável dentro do desenvolvimento de cada um. Você sentiu medo em algum momento? Não, mas todos sentimos tensão, mas também sentimos muitas manifestações de apreço pelo nosso trabalho. * Iara Lemos, editora do Congresso em Foco, é autora do livro A Cruz Haitiana, que mostra como a Igreja Católica usou de seu poder para esconder religiosos pedófilos no Haiti. O livro, em segunda edição, já foi lançado no Brasil e em Portugal e, ainda este ano, chega à França, traduzido ao francês pela Editora Infinita, de Portugal. O trabalho foi fruto de mais de dez anos de pesquisa, com depoimentos da vítimas e acessos aos documentos do Vaticano, da Justiça do Canadá, Estados Unidos, Haiti e República Dominicana. Na última semana, Iara fez a palestra de abertura da 93ª Feira do Livro de Lisboa, onde entregou em mãos o livro ao presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa.
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