Eduardo e Mônica, a doce visão musical dos anos 80
Várias coisas tornam Eduardo e Mônica irresistível, ao menos pra mim, que moro há mais de 30 anos em Brasília e amo tanto esta cidade. Pra começar, o carisma da dupla protagonista.
Congresso em Foco
06/02/2022 | Atualizado às 16h26
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Gabriel Leone e Alice Braga em uma das cenas gravadas no Parque da Cidade, eternizado na música de Renato Russo. Foto: Divulgação
Foram dois anos longe das salas de cinema por causa da pandemia. Três doses de vacina depois, máscara N95 no rosto e sem cadeiras próximas ocupadas, matei a saudade ontem (sábado, 5) ao ver Eduardo e Mônica.
O filme transpõe para a tela a famosa canção de Renato Russo, que é inspirada - com grande liberdade - na história de amor vivida pelo atual embaixador brasileiro no México, Fernando Estellita Lins de Salvo Coimbra, e a artista plástica Leonice (Leo) de Araújo Coimbra.
Leo e Fernando têm pouco a ver com a Mônica e o Eduardo da letra da música e menos ainda com os personagens encarnados por Alice Braga e Gabriel Leone. Ele, desde jovem, revelou-se um cara intelectualizado e sofisticado. Formou-se em Antropologia, jamais fez Engenharia. Ela não se formou em Medicina e é pouco mais velha que o marido, de quem está junto há 42 anos. Tiveram uma filha, e não gêmeos. Fernando conheceu, sim, o pai. É filho do ex-embaixador Marcos Coimbra, que foi ministro do ex-presidente Fernando Collor (do qual era cunhado) e faleceu em 2013.
As diferenças são detalhes. O fundamental é que, tanto quanto Eduardo e Mônica, Fernando e Leo eram e são muito diferentes. A forte união que entre eles se estabeleceu não se explica por afinidades. Ou melhor, não se explica, como sugerem os célebres versos iniciais do solitário trovador brasiliense:
"Quem um dia não irá dizer que existe razãoNas coisas feitas pelo coraçãoE quem me irá dizer que não existe razão"
(confira a letra completa do final deste post)
Várias coisas tornam Eduardo e Mônica irresistível, ao menos pra mim, que moro há mais de 30 anos em Brasília e amo tanto esta cidade. Pra começar, o carisma da dupla protagonista. Não surpreende a bela atuação de Alice Braga, atriz excepcional e que já mostrou o seu talento em vários trabalhos anteriores, inclusive em produções estrangeiras. Surpresa mesmo causa Gabriel Leone, ao mesmo tempo verossímil e encantador ao protagonizar a difícil passagem da adolescência para a idade adulta.
Depois, tem esse outro lado de Brasília, que vai além da capital do poder e da maldade, a imagem impregnada no imaginário de muitos brasileiros. A cena principal, que o noticiário costuma dedicar aos poderosos, fica por conta de jovens anônimos, que sonham, sofrem, cantam, dançam, bebem e, acima de tudo, amam e querem amar.
São suaves as referências ao lado mais triste dos anos 1980, a década em que o Brasil pôs fim a uma ditadura militar que entregou um país em grave crise econômica após cumprir o script completo próprio das autocracias: perseguiu a inteligência, torturou e matou pessoas, censurou a arte e o conhecimento, inverteu a ordem e a moral a pretexto de defender a pátria e os bons valores.
Na obra dirigida por René Sampaio, o avô de Eduardo faz o contraponto reacionário à energia transformadora daqueles anos encharcados de fé em um futuro melhor. Seu Bira, personagem vivido pelo sempre magnífico Otávio Augusto, é um militar da reserva, daqueles que - Deus meu! - acreditam que, se alguém foi de alguma forma punido pelo regime de 1984/1985, é porque mereceu. No mínimo, era "comunista".
É um filme sobre uma música e grande parte do seu charme está na trilha sonora, previsível, mas nem por isso menos charmosa. Curiosamente, o momento mais emocionante rola quando Eduardo resolve impressionar Mônica com uma canção brega e grita que precisa muito dela naquela noite porque ali, em meio a uma festa tipicamente brasiliense, os dois talvez comecem algo que pode durar pra sempre. Ou, para reproduzir o trecho original de "Total eclipse of the heart", que a galesa Bonnie Tyler imortalizou em um single lançado em 1983:
"I really need you tonightForever's gonna start tonight"
Gravado em 2018 e programado para estrear em 2020, Eduardo e Mônica teve o lançamento adiado várias vezes por causa da pandemia. Chega agora como um bafejo de ternura e de alto astral sobre uma nação novamente espezinhada pela ignorância e pela truculência. Não posso deixar de saudar a felicidade do roteiro, produto da criação coletiva de Matheus Souza, Jessica Candal, Claudia Souto, Michele Frantz e Gabriel Bortolini.
Pra concluir, aí vão alguns vídeos de canções que aparecem no filme:
1. "Total eclipse of the heart", com Bonnie Tyler (1983):
2. "Tainted love", com Soft Cell (1981)
3. "Should I stay or should I go", The Clash (1982)
4. "Bichos escrotos", Titãs (1986)
5. "Private Idaho", do B-52's (1980)
6. "Take on me", A-ha (1983)
7. "Eduardo e Mônica", que Renato Russo compôs em 1981, na versão lançada em 1986 pela Legião Urbana
Letra de "Eduardo e Mônica":
Quem um dia não irá dizer que existe razãoNas coisas feitas pelo coraçãoE quem me irá dizer que não existe razãoEduardo abriu os olhos mas não quis se levantarFicou deitado e viu que horas eramEnquanto Mônica tomava um conhaqueNo outro canto da cidadeComo eles disseramEduardo e Mônica um dia se encontraram sem quererE conversaram muito mesmo pra tentar se conhecerUm carinha do cursinho do Eduardo que disseQue tem uma festa legal e a gente quer se divertirFesta estranha, com gente esquisitaEu não tô legal, não aguento mais biritaE a Mônica riu e quis saber um pouco maisSobre o boyzinho que tentava impressionarE o Eduardo, meio tonto só pensava em ir pra casaÉ quase duas e eu vou me ferrarEduardo e Mônica trocaram telefoneDepois telefonaram e decidiram se encontrarO Eduardo sugeriu uma lanchoneteMas a Mônica queria ver um filme do GodardSe encontraram então no Parque da CidadeA Mônica de moto e o Eduardo de cameloO Eduardo achou estranho e melhor não comentarMas a menina tinha tinta no cabeloEduardo e Mônica era nada parecidoEla era de Leão e ele tinha dezesseisEla fazia medicina e falava alemãoE ele ainda nas aulinhas de inglêsEla gostava do Bandeira e do BauhausDe Van Gogh e dos MutantesDe Caetano e de RimbaudE o Eduardo gostava de novelaE jogava futebol-de-botão com seu avôEla falava coisas sobre o Planalto CentralTambém magia e meditaçãoE o Eduardo ainda tava no esquemaEscola, cinema, clube, televisãoE, mesmo com tudo diferenteVeio meio de repenteUma vontade de se verE os dois se encontravam todo diaE a vontade cresciaComo tinha de serEduardo e Mônica fizeram natação, fotografiaTeatro e artesanato e foram viajarA Mônica explicava pro EduardoCoisas sobre o céu, a terra, a água e o arEle aprendeu a beber, deixou o cabelo crescerE decidiu trabalharE ela se formou no mesmo mêsEm que ele passou no vestibularE os dois comemoraram juntosE também brigaram juntos muitas vezes depoisE todo mundo diz que ele completa ela e vice-versaQue nem feijão com arrozConstruíram uma casa uns dois anos atrásMais ou menos quando os gêmeos vieramBatalharam grana e seguraram legalA barra mais pesada que tiveramEduardo e Mônica voltaram pra BrasíliaE a nossa amizade dá saudade no verãoSó que nessas férias não vão viajarPorque o filhinho do EduardoTá de recuperação ah-ah-ahE quem um dia irá dizer que existe razãoNas coisas feitas pelo coraçãoE quem irá dizerQue não existe razão