A nossa democracia e´ sem demo e quase sem cracia: a representac¸a~o e´ completamente a`s avessas e, para os governos, o cidada~o e´ um rui´do. Na~o fosse assim e na~o teri´amos uma escola pu´blica ta~o preca´ria, uma sau´de ta~o doente, uma seguranc¸a ta~o homicida. Mas, se serve de consolo, esse mal e´ um veneno que bebemos desde que a Repu´blica e´ repu´blica: basta lembrar que nosso primeiro presidente eleito diretamente, Prudente de Morais, recebeu o voto de 2,2% da populac¸a~o. Isso foi em 1894. Washington Lui´s, em 1926, teve o voto de 2,3% da populac¸a~o. 30 anos de "res publica" e... nada.
Getúlio Vargas chegou ao poder por meio de um golpe militar (os tre^s ministros depo~em Washington Lui´s e depois entregam o poder ao caudilho gau´cho). Sim, muitos chamam esse movimento social de "revoluc¸a~o". Os mesmos que chamam a Repu´blica de "repu´blica". Tudo bem. Getu´lio fica 15 anos no poder e nada de eleic¸a~o. O Vargas que aprovou a Consolidação das Leis do Trabalho, hoje bandeira dos movimentos sindicais - que se chamam "populares" -, era o Vargas ditador, que mandou Olga Bena´rio para a ca^mara de ga´s e confinou Lui´s Carlos Prestes na prisa~o por nove anos. Ale´m de matar, torturar e destruir a vida de milhares de "comunistas". Graciliano Ramos que o diga, ele que viveu o absurdo de ficar dez meses preso sem qualquer acusac¸a~o formal. E hoje ha´ os que afirmam que os direitos trabalhistas sa~o coisa de "comunistas". Vai entender os livros que essa gente consulta...
Dai´ vivemos, entre 1946 e 1964, o u´nico peri´odo no qual a expressa~o popular comec¸ou, timidamente, a esboc¸ar um ar de representac¸a~o. Mesmo assim, so´ para exemplificar, na eleic¸a~o de Ja^nio Quadros, o recordista de votos do peri´odo, pouco mais de 17% da populac¸a~o votou. De cada cinco, na~o dava um. Para resumir: a primeira vez que mais de 50% da populac¸a~o brasileira participou de uma escolha de presidente na Repu´blica brasileira (o que quer dizer que a outra metade na~o votou), foi na eleic¸a~o de 2010. Ou seja, ontem. Na democracia, o povo e´ o mandata´rio: o deputado, senador, governador, presidente, te^m mandatos.
O Congresso deveria, portanto, expressar o conjunto da sociedade, tanto fi´sica quanto nas deciso~es. Quando, pore´m, buscamos saber a origem dos parlamentares, descobrimos que a representac¸a~o e´ uma pira^mide invertida: quem e´ minoria na sociedade e´ maioria no Congresso: quem e´ maioria na sociedade, quase na~o tem representac¸a~o. "Ah" - diriam os incautos - "mas se o povo 'escolhe mal', a culpa e´ do deputado, do senador?" Acontece, como diria o filo´sofo poli´tico Norberto Bobbio, que escolher pressupo~e ter informac¸o~es, capacidade para discernir e conscie^ncia para escolher. E essas na~o sa~o regras do jogo (de maneira que, no jogo, seja possi´vel burlá-las): sa~o premissas. Ou seja, sem elas, na verdade, na~o ha´ jogo!
Agora vivemos a crise. Mas vivemos, igualmente, na renu´ncia de Deodoro, no arbi´trio de Floriano, no desgoverno de Hermes da Fonseca, no Estado de Si´tio de Artur Bernardes, na ditadura de Vargas, na tentativa de impedimento contra Juscelino, na renu´ncia de Ja^nio, na deposic¸a~o de Jango, no AI-2 de Castelo, no Ai-5 de Costa e Silva, no Pacote de Abril de Geisel, no Centra~o da Constituinte, no afastamento do Collor, na compra da reeleic¸a~o do FHC, no mensala~o de Lula, no Petrola~o e no impeachment da Dilma, em cada santo dia do governo Temer.
E´ uma crise que tem uma natureza: nossa Repu´blica e´ um fantasma. Ou uma garatuja. Na~o aconteceu. Como uma maldic¸a~o que se perpetua, ainda vale a frase dita no primeiro artigo sobre a Proclamac¸a~o, na manha~ do dia 15, escrita pela pena sincera de Aristides Lobo: a participac¸a~o popular foi nula. O povo assistiu a tudo bestializado.
*Daniel Medeiros e´ doutor em Educac¸a~o Histo´rica pela UFPR e professor no Curso Positivo.
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