Após decisão do ministro Kássio Nunes Marques, do STF, Arthur Lira devolveu mandato de Valdevan Noventa, da mesma legenda de Bolsonaro. Foto: Michel Jesus/Câmara dos Deputados
Fabiano Angélico*
A declaração de
Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados - "Tem que pegar um arcebispo para ser diretor [da Petrobras]?" -, é muito elucidativa a respeito da visão de alguns setores da
classe política sobre questões relativas a integridade e governança.
Dois aspectos ficam claros quando se analisa a fala de
Arthur Lira: a) regras para prevenir a corrupção são obstáculos indesejáveis e passíveis de críticas públicas e b) a defesa do interesse público em detrimento de interesses particularistas está ligado à religiosidade, à doação, a "fazer o bem".
Após o escândalo do Petrolão - revelado pelo aparato estatal atuando de forma colaborativa e coordenada (Ministério Público Federal, Receita Federal, Polícia Federal, COAF) -, criaram-se regras de governança para as estatais de modo protegê-las de consórcios predatórios como aquele formado por PT e partidos do Centrão nos anos Lula-Dilma na distribuição interessada de cargos de diretoria na Petrobras.
Uma das regras é a de que pessoas em cargos estratégicos, como a de Presidente da Petobras, não podem ter contratos com empresas do mesmo setor enquanto estive no cargo. Diferentemente do que diz
Arthur Lira, é sim perfeitamente possível encontrar profissionais qualificados que concordam em abrir mão temporariamente desses ganhos do setor privado enquanto se trabalha no setor público -esse profissional certamente terá oportunidades profissionais interessantes no futuro, quando incluir no seu currículo o cargo de ex-presidente da Petrobras. Nenhum pecado aqui.
O novo consórcio do qual o Centrão faz parte, desta vez ao lado de Jair Bolsonaro, ultraliberais xiitas e militares que desonram a farda, já escapa dos controles social e estatal de diversas maneiras, principalmente com o desmonte dos órgãos de controle do Estado e com o ataque sistemático a pessoas e organizações que fazem controle social. O novo capítulo desse avanço predatório é em direção à maior estatal brasileira, aquela foi escoadouro de uma quantidade enorme de dinheiro nos anos PT - só para refrescar as memórias seletivas, apenas um gerente da Petrobras (ressalte-se: um gerente; isto é, alguém não muito alto na hierarquia), Pedro Barusco, devolveu R$ 157 milhões, dinheiro que estava depositado em contras secretas na Suíça.
Regras para prevenir e gerenciar conflitos de interesses estão previstas em convenções internacionais das quais o Brasil é signatário e são consideradas ferramentas poderosas contra a corrupção. No entanto, essas regras, na visão de certos setores da classe política, são obstáculos indesejáveis, que ensejam declarações indignadas como a de
Arthur Lira. O que o deputado alagoano gostaria? Bem, parece que ele queria total discricionariedade, como no caso do orçamento secreto. Sem transparência, sem prestação de contas públicas (isto é, sem accountability).
O outro aspecto que podemos ressaltar a partir da fala do presidente da Câmara refere-se ao uso do termo "arcebispo". O que o deputado quis dizer com isso essa referência? Então quer dizer que o melhor perfil para ocupar uma posição estratégica no setor público é alguém que não tenha valores como cuidado e amor ao próximo? É imprescindível ser profundamente religioso para atuar em prol do interesse público e não em prol de interesses particularistas? Isso foi uma crítica do deputado às pessoas caridosas e aos defensores de valores de religiosidade, um ataque ao "cidadão de bem"? Não podemos esquecer que muitos dos apoiadores de Jair Bolsonaro identificam-se como "cidadãos de bem".
Arthur Lira está com eles ou contra eles?
Arthur Lira precisa decidir de que lado está: ou o deputado é parte importante de um consórcio de "cidadãos de bem", aqueles patriotas que atrasam compra de vacinas sem propina e avançam o sinal para comprar vacina com propina; ou ele acredita que cidadãos de bem devem ser descartados para a presidência da Petrobras?
A última janela de transferências partidárias demonstrou que o grupo que comanda o país, formada por "cidadãos de bem" que agridem verbalmente uma mulher torturada enquanto estava grávida, conseguiu atrair muitos parlamentares para a sua base.
Caso esse grupo permaneça no poder após as eleições de outubro, provavelmente serão removidos os últimos resquícios de boa governança no setor público. Corre-se o risco, por exemplo, de não termos qualquer "arcebispo" nas posições mais estratégicas das empresas estatais, incluindo a Petrobras, a partir de 2023.
*Fabiano Angélico é pesquisador da USI (Università della Svizzera italiana), na Suíça, e consultor internacional em temas de transparência e combate à corrupção e à lavagem de dinheiro (Banco Mundial, UNODC, PNUD, Transparency International). É doutorando em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV EAESP) e em Ciências da Comunicação pela USI. Mestre em Administração Pública e Governo pela FGV EAESP, tem especialização em Transparência, Accountability e Combate à Corrupção pela Faculdade de Direito da Universidade do Chile e graduação em Jornalismo na UFMG.
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