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DIA DA MULHER
Congresso em Foco
08/03/2025 | Atualizado às 21h17
Radicada há mais de 30 anos na Grã-Bretanha, a urbanista e arquiteta brasileira May East é uma das principais referências mundiais no estudo das relações de gênero e cidades. Mundo afora, ela percorre ruas e bairros acompanhada de moradoras em busca de respostas para uma pergunta. E se as mulheres projetassem a cidade?
O questionamento é o título do livro que ela lançou em Brasília, pela Bambual Editora, na noite dessa sexta-feira (7), véspera do Dia Internacional da Mulher. Em entrevista exclusiva ao Congresso em Foco, May East defende que um planejamento urbano mais inclusivo e adaptado às necessidades das mulheres é capaz de promover cidades mais seguras, acessíveis, ambientalmente sustentáveis e, sobretudo, mais humanas.
"A relação entre mulheres e cidades não é um problema a ser resolvido; é um potencial a ser realizado", afirma.
Espaços para encontros sociais e arte pública, corredores e áreas verdes, vias mais voltadas para pedestres do que para veículos motorizados, segurança comunitária e ruas com nomes de mulheres. Essas são algumas das ideias que emergiram das entrevistas com 274 mulheres que ela realizou em três cidades da Escócia, país onde vive.
O livro, que foi lançado inicialmente em inglês, é um desdobramento de sua tese de doutorado em arquitetura e planejamento urbano pela Universidade de Dundee, na Escócia. Na pesquisa, May identifica 33 pontos cruciais em que o planejamento urbano pode ser melhorado para criar cidades mais inclusivas, sustentáveis e habitáveis. Essas descobertas oferecem estratégias práticas para urbanistas, formuladores de políticas públicas e comunidades.
Na visão dela, a abordagem do planejamento urbano deve ser regenerativa e centrada na comunidade, ouvindo as necessidades e perspectivas de diferentes grupos, incluindo mulheres. A arquiteta e urbanista cita Viena, na Áustria, Barcelona, na Espanha, e Lyon, na França, como cidades que têm avançado sob essa perspectiva. Na entrevista, também destaca algumas capitais que têm oferecido experiências pontuais de maior integração da população com o espaço urbano.
Cantora, compositora, integrante da banda Gang 90 & as Absurdettes, que fez sucesso no Brasil no início da década de 80, May East foi apontada como uma das 100 Líderes Globais em Sustentabilidade por três anos consecutivos e como Mulher da Década em Sustentabilidade e Liderança pelo Women Economic Forum. Leia a íntegra da entrevista:
Congresso em Foco E se as cidades fossem projetadas por mulheres, em que elas seriam diferentes?
May East - Seriam diferentes em vários níveis. Elas seriam planejadas para proximidade, em vez de mobilidade motorizada. E o transporte ativo seria incentivado, acredito que com o estilo de vida. As mulheres com as quais eu caminhei nos bairros e fiz entrevistas itinerantes compartilharam a visão de ruas para as pessoas, onde os carros seriam convidados como visitantes. O trânsito seria evaporado. Isso combinado com o sistema de transporte público, humanizado, que chega na hora e é confiável, planejados para viagens encadeadas, para as mulheres que trabalham, que carregam bolsas e carrinhos de bebê. Incluindo ônibus noturnos que param sob demanda. Isso teria um impacto direto na qualidade do ar, no clima, na saúde e no ritmo de vida das mulheres.
Esse é apenas um dos 33 pontos de alavancagem, que são pequenas coisas que você pode fazer no sistema urbano com grandes impactos no todo. Iniciativas que não só servem apenas mulheres e meninas, mas também idosos, pessoas de diferentes níveis de habilidade e de gênero também.
Se as mulheres estivessem desenhando a cidade, segurança seria priorizada. Elas melhorariam muitos métodos de vigilância natural, por meio de uma vigilância comunitária, que são o que a gente chama de olhos da rua. Quanto mais pessoas andam na rua, mais você mais se sente segura. Também haveria requalificação de policiais para atuarem como guardas comunitários, sem armas, mas com senso de pertencimento ao bairro. A cidade seria muito mais equilibrada entre ciclistas, pedestres e usuários de veículo motorizado.
Isso combinado também com a vigilância orientada por design, utilizando arquitetura, iluminação, anotação da vegetação, e mesmo a sinalização clara de boas-vindas.
Quais são, dentre esses 33 pontos de alavancagem citados pela senhora, os mais importantes, aqueles que podem contribuir mais diretamente para a melhor qualidade de vida?
Todos são importantes, mas tem um que gostaria de destacar, que é o cultivo da biofilia. Todas as cidades do mundo hoje, somadas, cobrem 4% da superfície da Terra. Entretanto, elas são responsáveis por mais de 85% da emissão de carbono, utilizam 80% da energia global e mais de 75% dos recursos naturais.
Nas cidades do presente e do futuro, há uma megatendência de rápida urbanização da população. Nós estamos com 58% da população humana morando em cidades, vamos para 70%. Só no Brasil, já são 86% dos brasileiros morando nas cidades. Como é que as crianças vão despertar essa biofilia? A biofilia vem do grego, bio é vida; filia, amor. Amor à vida, amor à natureza.
Um design biofílico numa cidade vai conectar todos os bolsões de verdes, pequenos jardins, com parques, com lugares para hortas urbanas, com trepadeiras, enfim, conectando tudo. Os urbanistas são convidados a desenvolver essas sensibilidades e competências para projetar esses espaços na cidade, onde as pessoas que lá moram, dos mais idosos aos mais jovens, possam criar essa conexão e despertar essa biofilia, esse amor pelas coisas vivas. Então, assim, aumentando a harmonização, instalando jardineiras, reconectando bolsões verdes, parques, matas ciliares, corredores de áreas verdes, tanto para polinizadores como para pássaros, e também para os amantes da natureza. O despertar de um senso da biofilia, cultivado desde a infância, pode ajudar prevenir o comportamento disruptivos durante a adolescência, além do impacto, também de poder controlar o ímpeto de maltratar a natureza na idade adulta. É assim, do 0 aos 7 anos, que essa conexão, esse despertar pelo que é vivo, tem de acontecer nas cidades. Isso está nas mãos dos urbanistas.
Que outros pontos de alavancagem a senhora destaca?
Tem um que é muito interessante que é sobre desenvolver espaços para encontros e para pertencimento. As mulheres com quem eu caminho, tanto do Hemisfério Sul quanto do Norte, reiteram que, tanto a profundidade quanto a saúde dos relacionamentos entre os grupos, indivíduos e comunidades, em determinado bairro ou cidade, são proporcionais à disponibilidade de espaços para encontros.
As mulheres reiteradamente falam da importância de haver lugares para se encontrarem, para estarem juntas, não para ter que consumir juntas. Desenvolver lugares para as pessoas se encontrarem sem a expectativa de gastar dinheiro para a socialização é muito importante. Aí podemos considerar tanto a qualidade quanto a disposição dos bancos numa praça pública, que vão passar de assentos solitários para espaços sociais, aumentando a confiança das pessoas de irem para os espaços públicos. Nós precisamos criar espaços onde as pessoas que são menos ouvidas possam estar presentes para serem ouvidas sem ter que consumir ou gastar dinheiro para ter esse senso de pertencimento à comunidade.
Há uma crescente urbanização da população humana. Que tipo de desafio isso implica de imediato?
É importante dizer também que as cidades estão todas sendo estendidas. Essa rápida urbanização da população humana é uma megatendência, como já falamos. E todas as cidades evoluem. Brasília, mesmo, começa com o Plano Piloto e depois evolui com as cidades-satélites, as extensões urbanas. E um dos insights dos pontos de alavancagem é desenhar essas extensões urbanas, esses satélites, de modo que a área original também evolua e seja beneficiada por esses redesenvolvimentos que acontecem nas bordas daquilo que é o original. As mulheres sempre falam que esses novos empreendimentos devem construir suas próprias infraestruturas, como telecomunicações, gestão de resíduos, abastecimento de água, afluentes, gerenciamento de risco de inundações, erosões costeiras, quando estão na beira do mar, enfim. E também planejar a amenidades e instalações adequadas com escolas, serviços de saúde, para evitar, trazer estresse adicional à área original, onde as pessoas têm que sair dos seus bairros para levar o filho à escola ou ir ao médico. É importante entrelaçar essas sutilezas das áreas para expandir esse senso de comunidade. Quando a gente começa a projetar extensões urbanas, é importante imaginar o todo evoluindo.
Como, por exemplo?
É preciso começar a atribuir nomes femininos às ruas. Afinal, a maioria das ruas tem nomes de homens. Por que não usar novas ruas como oportunidade para equilibrar essa desigualdade, colocar artes nas ruas, fazer o embelezamento dessas extensões. Principalmente no Hemisfério Norte, quando você tem esses monumentos que celebram a vida de heróis, normalmente eles têm nome, tem data de nascimento e morte. Quando vamos celebrar a parte feminina da história, normalmente apontam as qualidades, a virtude, o amor, uma figura mitológica. Não tem nome de pessoas, não tem história das mulheres. Em Roma, Viena e Barcelona, por exemplo, as novas ruas estão ganhando nome de mulheres, porque nós temos, historicamente, uma lacuna no planejamento de gênero no planejamento urbano.
Por quê?
Principalmente nas cidades que tiveram de ser reconstruídas depois da Primeira e da Segunda Guerra Mundial, no Hemisfério Norte, e nas novas cidades do Brasil, como Brasília, havia dois movimentos de inspiração: o modernismo e o fordismo. O modernismo foi aquele movimento que precisava sanitizar aquelas vilas medievais, as cidades que tinham sido bombardeadas e precisavam ser reconstruídas. Chegou com Le Corbusier, com essa visão racional da arquitetura. E o fordismo, os carros estavam sendo criados nos Estados Unidos. Com essas duas visões do mundo, as cidades ficaram muito longe desse senso de pertencimento. Um dos grandes presentes da covid-19 foi fazer com que as pessoas começassem a viver onde elas moravam. Hoje tem um movimento muito forte da cidade de 15 minutos, dos bairros de 20 minutos *.
Quando estive em Brasília, há um ano e meio, foi muito interessante, porque fiquei fazendo tudo a pé e com transporte público. Eu não consegui ir a muitos lugares, eu fiquei meio que perdida, porque não tinha nem calçada, nem transporte público. Foi interessante também porque descobri os super blocos, uma herança de desenho social lá de trás.
Segundo o Censo de 2022, 49 milhões de brasileiros não têm acesso adequado à rede de esgoto sanitário. Como pensar sob a perspectiva cidades que enfrentam ainda esse tipo de problema?
Sempre falo que a relação mulher e cidade não é um problema para ser resolvido, é um potencial para ser realizado. Quando você imagina essa quantidade de casas no Brasil que não tem esse saneamento básico, qual é o potencial? Qual é o potencial? O potencial, por exemplo, de Macapá possivelmente não é o mesmo potencial de Florianópolis. Você vai ter que caminhar nos bairros de Macapá e com as mulheres, com os principais stakeholders, para entender o que pode ser feito.
Podemos fazer tratamento de esgoto distritais. Vamos fazer aqueles tratamentos que são de raízes, né? O que pode ser feito? Esses pontos de alavacagem são bem interessantes porque eles são realmente enraizados na singularidade biocultural espacial do lugar. Ah, não, temos que chamar o BID para chegar e fazer todo uma revolução de saneamento básico. Não é por aí. Comparemos Paris e São Paulo.
O que há em comum entre elas?
As duas cidades são imensas, mas feitas de vilas. Os próprios barros de São Paulo são vilas, Vila Mariana, Vila Maria, vila disso e daquilo. Paris também. Quando pensamos como é que as cidades seriam se fossem projetadas pelo olhar das mulheres, é preciso começar a trabalhar em nível de bairro.
Eu nunca quis caminhar com mulheres em bairros populares ou afluentes para que fizessem uma lista de coisas que estavam erradas para que alguém fosse responsável por resolver aquele problema. A minha abordagem investigativa é regenerativa, é trabalhar com a singularidade do lugar, porque o potencial de cada lugar está enraizado na singularidade.
Resolver problema é olhar para o passado, realizar potencial é olhar para o futuro. Sempre tem mais potencial no território do que foi realizado e isso deve ser feito realmente democratizando. Nós não temos mais essa relação de que a cidade, o município, a prefeitura, é responsável por tudo. Isso está sendo desmontado cada vez mais, começando no Hemisfério Norte, onde as prefeituras não têm todos os recursos e também não podem abarcar tudo, pela rápida urbanização da população. Então vai acabar nas mãos dos pequenos conselhos, dos orçamentos participativos, dos grupos, das associações, a tarefa de fazer e de criar essa resiliência. Porque aquilo que pertence a você, você cuida. É cuidar de uma praça pública, não deixar que joguem lixo ou qualquer coisa lá. Esse senso de pertencimento, essa identidade, esse cuidado, provoca uma mudança de mentalidade.
Quais são as cidades mais antenadas com essas mudanças?
Posso dar vários exemplos. Em Lyon, Viena, Barcelona, mesmo em Florianópolis, você tem alguns planejamentos sensíveis de gênero emergindo. Viena tem mais de 30 anos de planejamento humano sensível ao gênero.
É promover a visão de transporte ativo como um estilo de vida. É equilibrar, por exemplo, a quantidade de minutos que você tem para cruzar uma rua, enquanto pedestre, em relação à quantidade de minutos que os carros têm para passar. São pequenas mudanças. Mudança dos nomes das ruas. Lyon, por exemplo, percebeu como os orçamentos da cidade privilegiavam uma cultura de esporte masculino sobre uma cultura de amenidades femininas. Como foi a observação? Eles começaram a medir quantos metros quadrados estavam destinados para esportes competitivos, tipo futebol, em comparação, com espaços para as mulheres fazerem yoga. Perceberam que havia um desequilíbrio imenso, espacial e também orçamentário.
Alguns anos atrás, eles fizeram uma revolução no orçamento da cidade, que chamam de orçamento de gênero. O orçamento de uma cidade não é um monte de números numa planilha. Na verdade, ele reflete os valores e aquilo que é importante para aqueles e aquelas que estão dirigindo a cidade.
Lá cada linha do orçamento passa por uma prova para saber o quanto se privilegia a presença masculina na cidade. Então a prefeitura começa a canalizar fundos para grupos esportivos de mulheres. O que elas gostam de fazer? Isso não é de um dia do outro. É um, um, dois anos, três anos. Se você chega lá hoje e caminha na cidade, sente que o espaço público é tão ocupado pelas mulheres como pelos homens.
E no Brasil, quais cidades se destacam nessa perspectiva de gênero?
Na verdade, quando a gente fala em cidades do Brasil fica sem identidade, uma coisa muito grande. Eu mesma, em Brasília, neste sábado (8), vou caminhar com algumas arquitetas e arquitetos que vão me mostrar lugares, superquadras, que estão super equilibrados, onde você tem tudo que você precisa lá. Eu estou indo para ir para realmente descobrir isso. Não faria uma generalização. Ah, o Brasil, está atrasado, aquela cidade não funciona. Não. Há iniciativas em várias cidades. Na Vila Mariana, na cidade de São Paulo, por exemplo, os moradores tomaram para si grande parte da manutenção, por causa das grandes chuvas que estão acontecendo, criando jardins de chuva, onde a chuva cai e não sai correndo pela avenida.
* [Nota da redação: cidade de 15 minutos é um conceito urbano residencial no qual a maioria das necessidades diárias pode ser atendida a pé ou de bicicleta a partir das casas dos moradores nesse intervalo de tempo. Bairros de 20 minutos são áreas urbanas onde os moradores têm acesso a serviços básicos, como escolas, supermercados, restaurantes e parques, sem depender muito do carro].
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