Cemitério em Manaus, uma das cidades com mais mortes no país por covid-19. Foto: Alex Pazuello/Prefeitura de Manaus
Apesar da longa viagem, Muhammad não aparentava estar cansado. Ao contrário, queria contar as novidades aos seus amigos. E deles queria saber das coisas do Brasil. Escutara que a situação brasileira estava caótica, com a pandemia se espalhando de forma incontrolável, os hospitais em colapso e o negacionismo oficializado como resposta curativa. Allah, o seu pai, estava muito preocupado com o clima de ódio que tomava conta da política, das famílias e das pessoas, impedindo uma reação organizada e unificada. Não compreendia esta mudança de humor, pois sabia que os mulçumanos - brasileiros ou não - sempre foram bem acolhidos no Brasil, convivendo em plena harmonia com as demais religiões.
- Você pode até ter razão, Muhammad, mas não podemos generalizar em termos de acolhida. - aparteou Oxalá. - Ainda somos agredidos em nossa religiosidade. Nossos cultos e terreiros continuam sendo violados.
- Ninguém está entendendo - concordou Emanuel. - Aqui é o país com a maior população católica do mundo e uma das Nações com o maior número de cristãos evangélicos. Será que esqueceram que são "Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus"?
- Allah também tem dito a mesma coisa do nosso povo - suspirou Muhammad. - Mas eu queria contar a vocês do meu sonho.
- Conte! Conte! Conte! - brincou Jaci. - O mundo dos sonhos pertence à noite que ilumino.
- Vamos a ele! - gargalhou Muhammad. - Eu sonhei que estava cavalgando o corcel celestial,
el-Buruq, com o anjo Gabriel, até o monte do Templo, para encontrar Abraão, Moisés e você, Emanuel, e daí eu acendia ao trono de Deus passando pelos sete céus.
- Em Jerusalém? - quis saber Jaci.
- Claro que em Jerusalém - respondeu, automaticamente, Muhammad.
- "E o Anjo me levou em espírito até um grande e alto monte. E me mostrou a Cidade Santa, Jerusalém que descia do céu, de junto de Deus, com a glória de Deus" - recitou Emanuel.
- Apocalipse 21, 10-11.18-21? - perguntou Jaci.
- Agora entendi a razão de Jerusalém também fazer parte de sua história, Muhammad - comentou Oxalá. - Não sem motivo ela é a Terra Santa dos cristãos, dos judeus e os dos mulçumanos.
- A Casa Comum, não é? - cutucou Jaci. - Não é assim que o seu papa fala, Emanuel?
- Deveria ser assim compreendida, Jaci - respondeu, Emanuel. - Mas, infelizmente, já foi palco de muitas guerras tidas como "Santas" no passado. E ainda segue, lamentavelmente, com a porta fechada para irmãos e irmãs, especialmente para aquelas pessoas que mais precisam ser abrigadas.
- Paciência! - suspirou Muhammad. - "Deus não muda o destino de um povo até que o povo mude o que tem na alma".
- Essa é a receita, Muhammad! - concluiu Oxalá. - O povo não deveria aceitar que o desprezo à vida é algo normal, que o ódio é mensagem divina ou que os seus governantes têm o direito de pactuar com a morte. Não há esperança nessa forma de pensar.
- Acho que esse povo não aprendeu a lição do seu santo Agostinho, Emanuel - seguiu, provocante e sapeca, Jaci. - "A esperança tem duas filhas lindas. A indignação e a coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem a mudá-las".
- "Para aquele que está entre os vivos, há esperança..." - sorriu, enigmático, Emanuel. - É nossa tarefa não permitir que se deixe morrer..
- Axé! - saudou Oxalá. - E que assim coletivamente seja.
> Leia mais textos da Parábola de Emanuel, Jaci e Oxalá
