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Cezar Britto
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Machismo Estrutural
28/4/2025 16:28
Há algumas semanas, neste espaço dedicado a reflexões e opiniões pessoais, registrei a existência de um Pacto de amor entre os homens e o desamor que dele gera. Apontei que esse pacto tinha relação direta com a rede de proteção em que os homens, conscientes ou não, amparam outros homens quando acusados do grave crime de violência contra a mulher, dentre eles, o feminicídio. Recebi críticas. Algumas elogiosas. Outras nem tanto. Então, percebi que o tema permanecia incompleto, o que me levou a retomá-lo agora, para apontar algumas questões e premissas envolvidas na origem do malfadado Pacto de Desamor. E começo relembrando uma passagem da minha vida, narrada no preâmbulo do livro Mulheres que ousam escolher, escrito no distante 2014 e publicado pela Editora RTM.
O marcante episódio ocorrera quando eu era estudante secundarista e integrava a diretoria do Centro Cívico do Colégio Atheneu Sergipense. Estávamos em um barzinho, reunidos em um desses imprescindíveis, intermináveis e revolucionários debates do movimento estudantil. Éramos jovens adolescentes, meninos e meninas, com idade média de dezesseis anos. Repentinamente, ingressou no bar uma mulher que trabalhava como garota de programa, conhecida de alguns. Aproximou-se da nossa mesa e, em tom provocativo, propôs a um dos colegas que a conhecia que fizéssemos um sorteio para, com ela, um de nós sair. Aos perdedores caberia o rateio do pagamento pelo programa. Um dos integrantes do grupo disse que anotaria em pequenos pedaços de papel, os nomes de todos os presentes. Efetuado o sorteio, meu nome foi anunciado como vencedor. Olharam para mim e para a prenda. E ficaram arregalados quando, visivelmente irritado, disse que não aceitaria aquele prêmio. Afirmei-lhes que achava ser um absurdo fazer de uma mulher mercadoria de consumo. Após um grande silêncio, as risadas voltaram, e todos disseram que se tratava de uma grande pegadinha, previamente armada para mim.
Eu teria dado o fato por esquecido, não fosse o efeito pessoal que dele decorrera. Na semana subsequente, em tom de confidência, disse-me uma colega que ouvira de outra, em uma roda de várias mulheres, que uma delas suspeitava de que eu fosse gay. Usara como argumento e prova de convicção, o episódio em que eu havia recusado sair com uma garota de programa lindíssima. A motivação moral da recusa não fora considerada pelo conclave feminino. Nele eu estava acusado, julgado e sentenciado por não assumir o papel social de predador na selva do machismo e no mercado dos corpos vulnerabilizados. O meu não estava sendo socialmente rejeitado e sequer apresentado como atenuante pelo feminino coletivo estudantil.
Alguns longos anos depois, outro episódio conexo me deixara igualmente perplexo. Estávamos em uma festa de aniversário da uma das amigas adolescentes da minha filha caçula, quando uma mãe, sentada ao nosso lado, brigava com o filho porque ele preferia a companhia dos adultos, à atividade de paquera entre a turma adolescente que a ali dançava. Não adiantava o rapaz explicar à mãe que preferira ficar em nossa companhia porque a sua namorada não pôde comparecer à festa e que, por isso mesmo, não achava justo paquerar outras mulheres. Argumento que, repetido por diversas vezes, irritava ainda mais a sua mãe. Da voz materna, a mesma acusação, julgamento e sentença: o acuado filho era besta, por não aproveitar a presença das lindas adolescentes que ali estavam.
O tempo, logo depois, fez-me advogado do Dialogay, ousado e corajoso movimento que ousava desafiar o conservadorismo no início dos anos 1990. Na mesma época em que me tornei consultor jurídico honorário da histórica Candelária, presidenta da Associação Sergipana de Prostitutas (ASP). Ambos os grupos faziam reuniões eventuais em nosso escritório de advocacia. Para os dois movimentos, fiz defesas e apresentei palestras públicas. Em razão desse envolvimento, como na época do movimento estudantil, ouvi piadas maldosas. Nada comparado às cenas de assumido machismo coletivo e às provocações centradas em preconceitos moralistas relatadas nas vozes dos membros e das membras das citadas associações. Não raro, cometidas por aqueles que frequentavam, na clandestinidade da alma e do corpo, os ambientes que publicamente condenavam. Arautos da moralidade que ainda teimam em fazer do mundo o habitat da desigualdade.
Não por saudosismo esses fatos estão relembrados. Mas, sobretudo, em razão deles permanecerem atuais. Gravemente atualizados pela inclusão de grupos de adolescentes como ardorosos defensores do pacto de desamor contra as mulheres. É o que desnuda a série britânica Adolescência, oportunamente exibida pela Netflix. Ela narra, evitando aqui um indesejado spoiler, a cultura tóxica de ódio às mulheres e ao feminismo, que se esconde no submundo das redes sociais. Vários desses grupos como o de celibatários involuntários, os Incesl culpam as mulheres pelos seus próprios infortúnios. Trata-se de comportamento semelhante ao das machosferas, manosferas e outros subprodutos do machismo estrutural, que fazem da violência, do bullying e até mesmo do assassinato de meninas adolescentes uma absurda antecipação do que poderão praticar, mais tarde, quando adultos se tornarem.
É preciso, portanto, quebrar todas as cláusulas que contribuem para a concepção machista de poder, sejam elas assinadas por homens, mulheres ou adolescentes. Ousar quebrar essa estrutura conservadora é missão humanista e urgente. Não aceitar como cláusula pétrea o suposto direito à apropriação das ideias, dos corpos e do destino das mulheres é o motor de partida para uma nova concepção de vida. É ainda, simultaneamente, o combustível capaz de mover a consciência da solidariedade entre todas as pessoas que habitam o planeta. Somente assim poderemos fazer decolar um novo mundo, onde todas e todos, independentemente do gênero, poderão voar e fazer voar livremente a máquina da humanidade. Um novo Pacto de Amor é possível. E necessário.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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