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Paulo José Cunha
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Escuta aqui: e quando vão pôr na cadeia esses pastores ladrões?
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MEMÓRIAS DA DITADURA
24/4/2025 | Atualizado às 14:32
Artigo escrito em parceria com o jornalista Ijalmar Maia Nogueira, ex-professor da UnB.
Com exceção do futebol, o brasileiro não tem o hábito de valorizar a memória, mas não recusa oportunidades como a do lançamento do filme "Ainda estou aqui", que trata de fatos relacionados com a ditadura militar, para revisitar o passado e aprender com ele. O sucesso do filme e o vigor de sua narrativa promoveram discussões em todo o País e despertaram o interesse pelos acontecimentos abordados e também a curiosa descoberta de que há histórias paralelas tão numerosas e presentes no cotidiano daqueles tempos quanto hoje são banalizados os depoimentos sobre a violência. Na atualidade, quando amigos, vizinhos e colegas de trabalho se encontram, sempre há quem tenha sido vítima de assalto ou golpe financeiro.
Durante a ditadura militar, também havia violência, mas o que mais afetava os brasileiros eram os casos de perseguições políticas, reveladores de como a vida das pessoas era capturada pelos aparatos da repressão instalados nas instituições públicas, elas próprias integradas ao aparelho do poder tão ilegítimo que suas operações se davam, como os dois depoimentos que seguem mostram, nos escombros da ilegalidade, do anonimato e de métodos vis. Na atualidade, quando amigos, vizinhos e colegas de trabalho se encontram, sempre há quem tenha sido vítima de assalto ou golpe financeiro. Durante a ditadura militar, também havia violência, mas o que mais afetava os brasileiros eram os casos de perseguições políticas, reveladores de como a vida das pessoas era capturada pelos aparatos da repressão instalados nas instituições públicas, elas próprias integradas ao aparelho do poder tão ilegítimo que suas operações se davam, como os dois depoimentos que seguem mostram, nos escombros da ilegalidade, do anonimato e de métodos vis.
Um momento terrivelmente inesquecível
Paulo José Cunha, jornalista, professor de Comunicação Social na UnB e escritor
Somente agora, bem recentemente, mais de meio século depois, foi que me dei conta dos riscos que passei naquelas oito horas em que estive dentro de um carro em poder dos agentes da ditadura, enfrentando um insólito interrogatório acompanhado de cotoveladas e safanões. O ano: 1973. O local onde me abordaram: o antigo Pavilhão das Metas, ao lado do Mastro da Bandeira, perto da Praça dos Três Poderes, onde funcionava a extinta Legião Brasileira de Assistência, onde eu trabalhava.
Tinha acabado de consumir a marmita do almoço, ali pelas 14h, quando alguém entrou na minha sala e me comunicou que uns homens, dentro de um carro parado lá fora, queriam falar comigo. Sem desconfiar de nada, fui até lá e, mal me aproximei, veio a ordem em tom autoritário: - Entra aí! Agora! E calado! Ainda sem entender o que ocorria, tentei balbuciar algumas palavras. Mas logo desisti, entrei e me calei, ao verificar o calibre pesado das armas que portavam. Eram três: um na direção, outro no banco do passageiro, e dois atrás, eu entre eles.
Durante todos esses anos, evitei falar desse episódio. Só lá uma vez ou outra relatei o que ocorreu, mas por alto, sem detalhes. Sempre se usa a palavra inesquecível para citar alguma ocorrência prazerosa, que ficou guardada na memória. Mas, neste caso, não. Aquele episódio ficou guardado em mim para o meu sempre, inesquecivelmente. Mas aqui o inesquecível foi exatamente por se tratar de um dos piores momentos que vivi. E por que só agora me disponho a contar com detalhes? Porque o momento exige. Impõe.
Naquela época, a UnB era um local de desconfiança. Não falávamos nada um pouco mais comprometedor sem olhar em torno. Até conhecíamos um ou outro dedo-duro, os colaboradores da ditadura. Um deles encontrei outro dia na rua, passou por mim de cabeça baixa. Não sei se me reconheceu. O clima era pesado. Sabíamos até de professores que haviam tirado do campus Darcy Ribeiro estudantes procurados pelos ôme usando seus próprios carros, alguns transportados no bagageiro. Barra pesada. Pesadíssima.
Eu tinha 22 anos, à época. Dois anos antes tinha chegado do Piauí num ônibus empoeirado para prestar vestibular para Comunicação da UnB, no qual fui aprovado. Morava numa república de estudantes, num quartinho que dividia com mais três colegas, na quadra 404 da Asa Norte, perto da universidade.
Mal entrei no carro, do qual não me lembro marca ou cor, só sei que não era carro de polícia, e ele arrancou. Aí começou o interrogatório. Queriam saber se meu nome era mesmo o da carteira de identidade, que haviam arrancado do meu bolso. Se tinha algum codinome. Se era filiado a alguma organização clandestina. Se tinha alguma atuação política contra a revolução. Se era comunista. Se conhecia algum colega comunista. A cada negativa, as cotoveladas eram mais fortes. E os gritos: - Tudo mentira! Todo estudante da UnB é maconheiro e comunista, acha que me engana, porra? Entre as perguntas, iam falando de detalhes da minha vida em Brasília, de onde viera, com quem convivia, os bares que frequentava etc. Sabiam muito. Sabiam... tudo. Achei que iam acabar comigo ali mesmo, e despejar meu corpo em algum lugar. A sensação de pânico só crescia. O carro percorreu um longo percurso através do Eixo Monumental, onde ficam a Rodoviária do Plano Piloto e a Torre de TV. Não corria, ia até devagar. Como estava entre os dois agentes no banco traseiro, mesmo que alguém noutro carro olhasse para o nosso, não ia perceber meu olhar de socorro.
De repente, mudaram de assunto, e passaram a falar de drogas, se era viciado, quais drogas usava e com qual frequência. Mais negativas minhas, mais bordoadas. Uma delas me atingiu o queixo e me fez morder a bochecha, que começou a sangrar um pouco, assim como o nariz. Tive de limpar o sangue com a mão e esfregar na calça jeans. Súbito, um deles, mais observador, perguntou o que eram umas manchas brancas no meu braço esquerdo, ali na dobra onde se aplicam injeções na veia. Expliquei que estava com uma micose, usando medicamentos. - Mentira! Eu conheço isso muito bem! Isso é marca de pico, seu viciado de merda! De nada adiantavam as negativas, que só complicavam a situação. Pelo contrário. Quando optava pelo silêncio, não fazia com que recuassem. Aí é que a gritaria e as bordoadas aumentavam. O carro enveredou por alguma via depois do Eixo Monumental. Não me lembro por onde. A gritaria dentro do carro não parava. Quando a noite se aproximava, um deles, ao meu lado, sacou uma arma e ficou segurando, calado, em tom ameaçador. De repente, o carro dirigiu-se ao final da Asa Norte, onde fica a região das casas do Lago Norte. Mas, na época, quase não havia ainda casas ali. Entrou por uma zona de cerrado, até onde pude perceber no breu da noite. O carro parou no meio do caminho, num local deserto. Descemos. E ali, na escuridão, o interrogatório prosseguiu. Agora queriam saber se meus professores faziam alguma doutrinação política durante as aulas. Que livros eu era obrigado a ler. Se algum deles era sobre a Rússia, China ou Cuba. Mais negativas, mais gritos, muitos palavrões. Isso durou até umas 9h da noite. De repente entraram no carro, um deles me deu um tapa na cara, me mandaram ir para algum lugar impublicável, me largaram no meio do cerrado e o carro arrancou.
Ainda atordoado, comecei a caminhar pela pista iluminada por um fiapo de lua, quando avistei os faróis de um carro. Era um ônibus! Fiz sinal para parar e ele... parou! Estava vazio. Pedi carona. O senhor deixa eu entrar, me leva? O motorista disse que sim, que eu podia entrar. Falei que estava perdido, que me ajudasse. Felizmente não me perguntou nada. Falou que estava indo para a... Asa Norte! Aleluia! Deixou eu entrar e desembarquei justamente na altura da 404 onde morava. Puta sorte. Quando cheguei, percebi que não me haviam retido as chaves do apartamento. Ufa! Os colegas estavam acordados e apreensivos, sem saber o que estava acontecendo comigo, pois eu sempre voltava cedo pra casa e já eram quase 10 da noite. Não existia celular naquela época por isso nem tinham como se comunicar comigo. Quando comecei a contar o sucedido, ficaram assustados, de olhos arregalados, procuraram me acalmar. Somente lá pelo final da madrugada foi que consegui dormir.
Agora, passados tantos anos, é que percebo os riscos que corri, diante dos diversos relatos de pessoas que igualmente sofreram sequestros como eu, mas passaram por torturas (o que não foi meu caso, que fique claro), enfrentaram prisões arbitrárias ou foram simplesmente desaparecidas ou friamente assassinadas. Parodiando pela milésima vez o filme famoso, felizmente (e ainda bem que...) ainda estou aqui.
Cicatriz não é tatuagem
Ijalmar Maia Nogueira, jornalista e ex-professor de Comunicação Social na UnB
A sensação de distanciamento que me conforta neste momento é um dos benefícios mais compensadores que o tempo proporciona. A amiga que me acompanhava lembrou, mais tarde, que era meio dia e onze minutos. O dia, fixado para sempre, foi 31 de março de 1973, mas a cena insiste em manter-se e retornar, de forma nítida. Lembrar esse acontecimento não é um exercício de masoquismo nem expiação existencial. Seria preferível esquecê-lo. No entanto, voltar a vivê-lo ocorre à revelia, em horas incertas e frequentes, e traz para o presente os horrores que me dominaram em cada segundo daquelas onze horas e 45 minutos, de forma plena, e dos dias seguintes de inação, impotência e recolhimento.
Saída Norte do Minhocão, o imenso prédio do Instituto Central de Ciências, o ICC da Universidade de Brasília. Hora de encerrar a semana de trabalho e estudos num almoço de sábado. O fusca de cor clara rompeu a tranquilidade daquele momento com o barulho da freada brusca e dele saíram dois homens armados e me puxaram para o banco traseiro. Um deles enfrentou dificuldades para se desvencilhar da amiga que me acompanhava e, num ímpeto de desespero, agarrava-se a mim. Foi empurrada e se desequilibrou. O carro deu partida com a porta ainda aberta. O vice-reitor, professor Marco Antônio Dias, testemunhou a operação ao lado de 15 ou 20 pessoas que se aglomeravam no local.
No carro em movimento, cotoveladas, capuz e a ordem fique quieto!. O carro virou à direita rumo, supostamente, à Via L-4 Norte, até uma troca de viaturas e de comando, provavelmente debaixo da Ponte do Bragueto. Em pouco tempo outra parada, ao som bem familiar de toques de corneta. O capuz foi levantado rapidamente, o suficiente para visualizar um oficial do Exército e outros homens ao redor, todos uniformizados.
- Tira a roupa!... A cueca também!
As sombras e angústia daqueles tempos, dias e horas do cotidiano sufocante deram lugar ao inferno em forma de suposições e pavor nutridos pela própria memória num desfile assombroso de desaparecidos, padecimentos e vítimas frequentes de operações assemelhadas, lá mesmo, na UnB, e agora comigo.
No ambiente universitário, as tensões regulavam comportamentos. A desconfiança era regra, a camaradagem exceção e a insegurança dominava as relações sociais, antes movidas pelo saudável contágio da descoberta do conhecimento e do otimismo com relação aos projetos individuais rumo à emancipação.
O que vai acontecer? A cada minuto, a cada ruído na grade da cela, a aflição ante a possibilidade de vir o pior.
- Qual é o seu codinome?
- Não tenho codinome.
- Você sabe onde está?
- Na PE (quartel da Polícia do Exército).
- Como sabe?
- Servi no BGP o Batalhão da Guarda Presidencial, ao lado da PE , ouvi os toques de corneta.
Ao lado do quartel onde prestei o serviço militar obrigatório me sentia miseravelmente frágil e isolado de qualquer proteção. Justo ali, onde apresentei desempenho destacado a ponto de ser indicado a Praça Distinta e receber elogios, todos assentados em minha ficha de alterações, como à época se referiam ao dossiê de cada um.
Até então eu conseguira distinguir minha passagem pelo Exército dos relatos dramáticos sobre o que acontecia ao redor e em todo o País. A violência da prisão o sequestro, não se opunha propriamente à liberdade regulada, e sim, à convicção por mim retida de que o dever cumprido me respaldaria a condição de cidadania que cultivei devotamente e agora, na cela da PE, era tratado como o inimigo hipotético da época de treinamento. De soldado considerado exemplar a inimigo, sem causa declarada, sem qualquer palavra ou gesto que acenasse com alguma esperança. Sob o capuz, o desamparo era total na escuridão similar à de uma caverna sem saída.
Por quê?
O tempo parou na escuridão do capuz. Quando retirado, nenhuma luz nas janelas estreitas da cela. Já era noite. Vômitos, dor de cabeça e mau cheiro são lembranças inevitáveis. Não consigo lembrar-me do que pensava, sobre o que pensava, senão no barulho das chaves, no arrastar da grade, em quem chegava e o que fariam. A noção do tempo já não importava. A dor de cabeça era o sinal que me dizia estar vivo e essa condição de consciência me alertava de que certos males, certas atrocidades, difundidas por meio de confidências discretas, no cochicho encoberto pelo medo, habitualmente transcorrem sob o manto e o silêncio da noite, da escuridão, do isolamento.
Quando a dor de cabeça se intensificava em ondas pulsantes, o silêncio foi interrompido pelo som de coturnos pisando como golpes de martelos na testa, chaves em acionamento, fechaduras abertas e grades arrastadas. Levantaram o capuz. No horror diante de sombras humanas projetadas pela luz forte do corredor, veio uma ânsia de vômito, desta vez sem mais nada a expelir.
E foi recurvado por um incômodo no abdômen que me foram devolvidos os meus pertences. Ao colocar o relógio no pulso, vi que a eternidade, naquele instante, ainda se situava no mesmo dia: 23 horas e 45 minutos.
- Você pode ir, disse um oficial.
A dor de cabeça me turvava o pensamento e embaçava a visão. Só desejava o comprimido contra dor de cabeça que carregava e fui impedido de tomar. Engoli dois a seco. Mais tarde a dor passou. O pesadelo permaneceu.
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