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Gisele Agnelli
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ESTADOS UNIDOS
14/4/2025 15:11
Por Gisele Agnelli, a partir dos Estados Unidos, em diálogo com Paulo Dalla Nora Macedo, a partir de Portugal.
(Transcrição comentada e adaptada a partir de diálogo gravado entre os autores)
Vivemos um momento em que a democracia norte-americana se desfaz. Se liquefazem as instituições, os freios constitucionais, os pilares simbólicos da república que, desde a era Madison, pareciam sólidos. O governo Trump 2.0 não é uma continuação do anterior, é sua mutação, mais estratégico (Projeto 2025), mais cínico e perigosamente mais eficaz. Trata-se de uma metamorfose autoritária com verniz institucional, amparada por uma rede de cúmplices tecnológicos/econômicos e ao que tudo aponta... infelizmente, jurídicos. Para discutir essa arquitetura do desmonte democrático e seus impactos transnacionais, conversei com Paulo Dalla Nora Macedo, economista e cofundador da plataforma Lisboa Connection, que analisa as interseções entre o Brasil e a Europa. Nosso diálogo, inquieto e transdisciplinar, percorreu temas como o tarifaço, o papel das big techs, a captura do Judiciário e a guerra cultural transformada em política de Estado.
Paulo Dalla Nora Macedo - O governo Trump 2.0 não é uma anomalia, é a continuação do Brexit, só que em esteroides. Ambos são experimentos políticos fundamentados na captura das redes sociais e no uso seletivo da realidade para construção de um novo senso comum. A diferença? O presidente americano tem muito mais poder institucional do que qualquer primeiro-ministro europeu, e Trump chega agora com um plano de engenharia total, o infame Projeto 2025.
Gisele Agnelli - O Executivo, com Trump, está esticando a corda até seus limites constitucionais, legislando por ordens executivas, com o Legislativo inerte, quase inoperante. A estratégia de Trump é usar brechas legais para governar como um monarca absolutista. Dois casos são emblemáticos: O uso da Alien Enemies Act (1798), utilizada para autorizar deportações em massa sem devido processo legal, sob a justificativa de segurança nacional, bem como o uso da International Emergency Economic Powers Act (1977), invocada para justificar o tarifaço econômico como se o país estivesse sob ameaça de guerra. Ambas são legislações antigas, com uso distorcido com o objetivo de sobrepujar o legislativo. O mais alarmante, é que algumas ações têm recebido aval da Suprema Corte, como no caso dos venezuelanos enviados ilegalmente a El Salvador, sob pretextos frágeis como tatuagens associadas a gangues. A Suprema corte reconheceu o direito do devido processo legal aos Venezuelanos mais se calou quem relação ao uso da Alien Enemies Act, por Trump.
Paulo Dalla Nora Macedo - Nenhuma lei funciona sozinha se quem governa está disposto a ignorar os limites do jogo democrático. Existem tantas leis e tantas possíveis intepretações que se alguém quiser esticar a corda, e não tiver limites provavelmente conseguirá, Stalin já usava isso em um contexto diferente mais com a mesma lógica de suporte: Mostre-me o homem e lhe mostrarei o crime. Trump joga fora da moldura institucional, e a lei, sem interpretação combativa, vira ferramenta sem dente. Somente um Judiciário militante, como o modelo de Alexandre de Moraes no Brasil, que segue o Alemão, é capaz de conter esse tipo de líder. Mas nos EUA, esse formato de democracia militante não tem aderência, e os riscos são reais: um juiz que ousar resistir pode ser ameaçado publicamente, exposto nas redes e até perseguido fisicamente.
Gisele Agnelli - O modelo constitucional americano tem algumas vulnerabilidades comparado ao brasileiro. A jurisprudência por precedentes e a dificuldade de atualização da Constituição americana. Podemos até discutir se o número de emendas na Constituição brasileira é bom ou ruim, mas é certo que a mantém atualizada. Nos Estados Unidos é muito difícil tanto acrescentar quanto se retirar artigos, por isso estas leis antigas em que Trump se apoia, totalmente fora do contexto histórico para serem aplicadas, ainda estão lá. Hoje, o futuro democrático americano parece nas mãos de dois juízes da Suprema Corte: John Roberts e Amy Barrett, conservadores, porém com tendências de interpretações mais constitucionalistas. Isso, por si só, já é sintomático do colapso institucional, na medida em que estamos falando de pessoas, não mais de instituições.
Paulo Dalla Nora Macedo: Há uma divisão interna no campo da extrema direita: de um lado, os nacionalistas econômicos como Steve Bannon e Peter Navarro; de outro, os anarcocapitalistas digitais como Musk e Zuckerberg, que preferem um mercado sem barreiras, sem tarifas, mas também sem Estado. Vejo na economia o único freio real ao autoritarismo trumpista. Ao contrário da política migratória ou dos direitos civis, que ele controla com mão de ferro, a economia global escapa à sua autoridade. As tarifas impostas a mais de 100 países geraram reações imediatas, e Trump recuou em menos de 48 horas (com exceção da China). Além disso, há rachaduras no próprio bloco de apoio: Musk já chamou Navarro de idiota, demonstrando fissuras entre os setores tecnocratas e os ultranacionalistas. O campo econômico será mais difícil para Trump manipular, pois depende de fatores externos e de aliados que não compartilham da mesma visão fechada de mundo. A repressão a imigrantes e o combate a cultura woke são o eixo mais visceral do governo Trump, neste assunto, não vejo muita escapatória. A ala nacionalista apoia com fervor e a ala anarcocapitalista acha bom.
Gisele Agnelli: Um dos aspectos mais inquietantes do governo Trump 2.0 é o papel desempenhado por Elon Musk: uma figura paraestatal, operando nas sombras com poder quase ilimitado. Musk não foi sabatinado, nem eleito, mas está no centro do poder. Pior: promove os próprios negócios a partir da Casa Branca, como no episódio em que usou o cenário presidencial para divulgar ações da Tesla.
Outro aspecto gravíssimo para mim é o desaparecimento literal de imigrantes nas ruas americanas. Não se trata apenas de deportações, mas de detenções extrajudiciais, desaparecimentos sem registros oficiais, baseados em informações fiscais e migratórias acessadas legalmente/ilegalmente por agências de segurança estaduais. Nos estados conservadores como a Flórida, xerifes locais atuam em parceria com o ICE, e os dados migratórios passaram a ser acessados por meio do cruzamento com os formulários do imposto de renda. A violência contra imigrantes está sendo normalizada: e agora, até o direito à liberdade de expressão está sob ataque. Estudantes estrangeiros não têm direito a serem ativistas, declarou publicamente o senador Marco Rubio. Um ataque direto à Primeira Emenda. Para piorar novamente a Suprema Corte chancelou a ideia que Mahmoud Kalil pode ser deportado, sem haver provas de que tem ligação com Hamas, parece ser um caso de crítica à política externa Americana com relação do conflito, Israel/ Palestina apenas.
Mesmo diante de todos esses abusos, Trump mantém índices de aprovação relativamente estáveis. Apesar de todas as turbulências destes três primeiros meses, sua aprovação foi de 47% em janeiro, logo após a posse para 43% em abril, segundo a Reuters/Ipsos. Isso se explica por dois pilares simbólicos que sustentam sua popularidade:
1. A retórica anti-imigração, que cria um inimigo comum.
2. A política dita anti woke/guerra cultural. Estes dois pilares sustentam sua popularidade, o ponto frágil onde a avaliação de Trump está degringolando é a economia. No entanto, mesmo que a economia vá muito mal, os dois pilares supracitados ainda podem sustentar em alguma medida a popularidade de Trump. Precisamos observar, no entanto, as próximas pesquisas, pois o Americano já mostrou que está sem paciência para preços altos de qualquer natureza. Neste ponto observo uma desconexão entre o projeto (in)civilizacional de longo prazo dos trumpistas (com o Projeto 2025) e as demandas imediatas da população. Os americanos querem custo de vida menor em primeiro lugar. Trump está indo mal nesta entrega e mais focado no redesenhar do mundo baseado na supremacia norte-americana, branca, cristã e heteronormativa, ele está mirando o longo prazo.
Paulo Dalla Nora Macedo e eu convergimos em um ponto crucial: a destruição simbólica e prática das universidades é um pilar essencial do projeto autoritário em curso nos Estados Unidos.
Gisele Agnelli: o ensino superior americano sempre foi um diferencial competitivo global norte-americano com recursos, bolsas, diversidade de pensamento e atração de talentos. No entanto, isso está sendo sistematicamente desmontado. Eles estão intimidando estudantes internacionais. O ambiente acadêmico é onde se forja o pensamento crítico. Cortar essa liberdade é sufocar o futuro. É uma pena, porque isso vai afastar talentos. E, com eles, bolsas de estudo, linhas de pesquisa e excelência institucional. A força das universidades está sendo minada. Diferente da experiência que tivemos no Brasil, as universidades americanas, principalmente as mais poderosas, as Ivy Leagues, parecem estar cedendo as investidas de Trump, deixando o corpo docente e discente sozinhos. Uma pena quando comparamos com o importante papel que USP, PUC, tiveram antagonizando a ditadura no Brasil, mesmo num contexto muito mais repressivo.
Paulo Dalla Nora Macedo: a destruição das universidades não é um erro colateral, é um objetivo central. Eles querem tirar o poder das universidades, assim como da dissidência e da imprensa. O império digital deles precisa ocupar esse espaço. Mesmo os setores mais distintos do trumpismo dos ultra religiosos aos tecnocratas libertários compartilham esse desejo comum de esvaziar as universidades, por considerá-las redutos de crítica, diversidade e resistência.
Os Estados Unidos estão vivendo um experimento autoritário de nova geração: uma fusão inédita de big tech, o grande capital, legalismo distorcido e violência. Não é mais sobre o que ele (Trump) faz. É sobre quem vai ter coragem de pará-lo.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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