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Gisele Agnelli
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MUNDO
25/3/2025 | Atualizado às 8:03
Artigo escrito em parceria com Luciana Bauer, advogada, fundadora do coletivo climático Jusclima e professora de Filosofia do Direito e Direitos Climáticos.
"A democracia não morre de uma vez só. Às vezes, ela simplesmente deixa de funcionar e ninguém percebe até ser tarde demais."
Luciana Bauer
A história política do Ocidente é marcada por rupturas anunciadas, por colapsos institucionais que não acontecem num único golpe, mas em erosões progressivas, silenciosas, legitimadas pela própria legalidade que devoram. No século XXI, a morte da democracia já não acontece por tanques na rua, mas por decretos, canetadas e discursos performáticos em redes sociais. A pergunta que hoje reverbera sobretudo diante do segundo mandato de Donald Trump é: quando a gente percebe que a democracia já morreu?
A resposta não é trivial. A morte da democracia, como sugerem os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt em How Democracies Die (2018), ocorre quando os próprios atores eleitos passam a corroer, por dentro, os mecanismos de freios e contrapesos que sustentam o regime democrático. Nos Estados Unidos, o desmonte acelerado de agências públicas, o ataque ao Judiciário federal, e agora, o esfacelamento da Secretaria da Educação, escancaram a lógica operante de um governo que governa contra a democracia e não por meio dela.
É emblemática a tentativa de extinção, por decreto presidencial, do Departamento de Educação. Como se sabe, o Executivo não possui essa prerrogativa constitucional. Trata-se, portanto, de um movimento de stress institucional deliberado ele trabalha por esgarçamento para estressar todo o sistema, observa Luciana Bauer. Ainda que barrado por decisões judiciais federais parciais, o dano simbólico já está feito. O status da educação como pilar de cidadania democrática está sendo rebaixado à condição de ornamento dispensável.
A crise que se desenha não é apenas institucional. É pedagógica e civilizatória. Os Estados Unidos, como tantas democracias liberais, nunca priorizaram a formação democrática de sua juventude. Ao contrário da Suíça, onde há conselhos estudantis funcionando como micro parlamentos e um currículo voltado à participação direta, o sistema educacional americano pouco investe na formação política cidadã. A falência do ideal de Paideia educação para a democracia, na Grécia antiga para formar cidadãos livres e politicamente conscientes cobra agora seu preço.
E se Trump representa a figura do novo americano, é porque ele traduz uma estética darwinista do mais forte, uma ética do ressentimento e da vingança, amplificada por uma base que se sente há muito desamparada pelo sistema político. A adesão massiva de setores médios empobrecidos ao trumpismo, mesmo quando diretamente prejudicados por suas políticas econômicas, revela uma democracia que falhou em oferecer representação e pertencimento.
O Projeto 2025, documento programático da direita radical americana, vem sendo implementado com precisão assustadora: desregulamentação ambiental, revisão da Primeira Emenda, nomeações leais no funcionalismo público e a transformação do aparato estatal em instrumento de perseguição. Como já alertou Margaret Atwood em O Conto da Aia, o autoritarismo não chega como uma hecatombe, mas como uma sequência de pequenas concessões, até que tudo já mudou e ninguém sabe exatamente quando.
O gesto mais emblemático talvez tenha sido a anistia informal aos invasores do Capitólio. A legitimação política da violência como patriotismo sinaliza um ponto de não-retorno. Como escreveu recentemente o New York Times, juízes federais já temem por sua segurança pessoal inclusive a ministra Amy Coney Barrett, outrora apoiadora da doutrina da imunidade presidencial irrestrita, hoje ameaçada pela própria máquina autoritária que ajudou a legalizar.
Há um tanto de tragicômico pensar assim, mas, durante o governo Trump 1, a sustentação da democracia pareceu estar em alguns momentos apenas nas mãos do vice de Trump, Mike Pence, um reacionário, mas constitucionalista, em meio à turba violenta e enlouquecida que invadiu o Capitólio: Mike Pence reconheceu o resultado eleitoral e deu vitória a Biden. Neste governo Trump 2, parece que o último bastião que segura a democracia um pouco de pé são Jhon Roberts e Amy Barrett, dois ministros do Supremo conservadores; indicados por presidentes republicanos, mas legalistas, constitucionalistas. Um sinal vermelho para a democracia aqui é que não são mais as instituições que a suportam, mas o trabalho de uma ou duas pessoas ainda comprometidas com as regras democráticas.
A pergunta que nos guia não deve ser apenas quando as democracias morrem?, mas quando nós, enquanto sociedade, percebemos que elas já morreram? Porque talvez a maior ameaça não seja a ditadura explícita mas a normalização do colapso, a paralisia de uma sociedade cindida, catatônica, incapaz de reagir. Como alertava Walter Benjamin, o estado de exceção em que vivemos não é a exceção, mas a regra.
Talvez o que esteja em jogo, mais do que a sobrevida das instituições, seja a própria capacidade de reconhecermos a sua morte.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].
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