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Ricardo de João Braga
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SISTEMA DE GOVERNO
11/3/2025
Ronda o Congresso Nacional o persistente projeto do semipresidencialismo. Propaga-se para um problema, uma solução. A meu ver, contudo, cairíamos em outros problemas, provavelmente mais graves.
No sistema de governo presidencialista há eleições distintas para a escolha do chefe de governo que é também chefe de Estado e para a composição do Poder Legislativo. De um lado, o presidente da República; e, de outro, o Congresso. O presidente escolhe livremente seus ministros e o Legislativo tem autonomia e independência para apreciar leis e cumprir suas competências fiscalizatórias.
No parlamentarismo padrão há uma eleição apenas, para o Legislativo. Este forma o gabinete primeiro-ministro e demais ministros a partir do partido majoritário, de uma coalizão majoritária ou mesmo de um governo minoritário aceito pela maioria. Aqui o chefe de governo é o primeiro-ministro e o chefe de Estado, um presidente ou monarca alguém com poderes residuais de símbolo do país, chefe das Forças Armadas e em alguns casos, árbitro de crises políticas. O chefe de governo responde ao Congresso, depende dele para governar e para se manter no cargo.
Quanto ao semipresidencialismo, trata-se do caso intermediário entre os dois polos da distribuição de poder. Quanto de prerrogativas um primeiro-ministro tiraria do presidente no caso de uma reforma constitucional no Brasil ainda está em aberto, medida definida pelo jogo político. Contudo, se for honrada a ideia de semipresidencialismo, teríamos um presidente mais fraco que hoje e um primeiro-ministro com poderes relevantes.
O argumento forte a favor do semipresidencialismo afirma que tal sistema traria mais estabilidade ao governo e ao sistema democrático. De fato, a literatura acadêmica demonstra que governos parlamentaristas (o que não é a mesma coisa que semipresidencialistas) tornam os governos menos duradouros, mas o sistema democrático mais longevo. Diante de crises e de um chefe de governo com problemas, troca-se essa autoridade e se forma novo governo. Preserva-se o sistema com a troca dos grupos políticos.
Já no presidencialismo a crise de um presidente é também do sistema de governo, visto que as únicas formas constitucionais de retirar um presidente do cargo são uma eleição que pode distar muito no tempo ou um impeachment que de fato consiste numa ferramenta jurídico-política não apropriada para lidar com crises, pois mais as exacerba que elimina. No parlamentarismo haveria uma natural mudança de gabinete; no presidencialismo a democracia em risco.
Na prática, o argumento do semipresidencialismo poderia afirmar que não precisaríamos ter sofrido os agudos problemas dos impeachments de Fernando Collor e Dilma Roussef e mesmo o governo disfuncional de Bolsonaro, em especial durante a pandemia.
Contudo, creio que a proposta de reforma passa-se na realidade por um canto de sereia, pois há uma série de perigos não discutidos. Aqui tratarei de três deles que mais chamam a atenção: responsabilidade do legislativo, accountability eleitoral e perfil ideológico do eleitorado. Todos partem da premissa de que no semipresidencialismo o chefe de governo, a autoridade que fará o Poder Executivo agir, será escolhida pelo Poder Legislativo e não diretamente pelo voto popular.
No imenso número de políticas públicas estruturantes que o Brasil construiu desde a Constituição Federal de 1988 são raríssimos os casos em que Poder Legislativo protagonizou formulação, proposição e condução das negociações e deliberações. Em regra o Congresso veio a reboque do Poder Executivo. Nessa dinâmica assimétrica há tanto um elemento de capacidade técnica em que o Executivo é muito superior, porque conta com muito mais órgãos e servidores quanto um de responsabilidade e consequência sobre o resultado das políticas públicas.
O que esperar então de um primeiro-ministro que fosse escolhido pelo Poder Legislativo e dependesse de seu apoio para manter-se no cargo? Quais seriam o ímpeto e a capacidade das forças organizadas no Legislativo para protagonizar a produção de políticas públicas relevantes?
A pergunta básica é: quem vem primeiro, a responsabilidade ou a prerrogativa? Pelo que temos hoje, a instauração de um primeiro-ministro com poderes relevantes consistiria na aposta que o Congresso, diante da prerrogativa e da responsabilidade do governo, assumiria o papel consequente que raramente conheceu em sua história. Lembremo-nos dos exemplos recentes do orçamento secreto, que impede a responsabilização dos políticos patrocinadores de distribuição de recursos, e da renegociação da dívida dos estados, a qual aumentará silenciosamente a dívida pública em mais de um trilhão de reais em algumas décadas. Um choque de responsabilidade no Legislativo traria maturidade e consequência?
Vale acrescentar que nos parlamentarismos funcionais, aqueles de democracias avançadas, o sistema partidário é menos fragmentado que o brasileiro, os partidos mais disciplinados e coesos eleitoral e legislativamente e há alguma distinção ideológica relevante entre eles. No caso brasileiro, um semipresidencialismo viria antes da adultez de nosso sistema partidário ainda fragmentado e sem distinção ideológica clara entre muitas agremiações.
Accountability, um conceito estrangeiro que significa conjuntamente transparência e responsabilização. Os chefes do Executivo, escolhidos pelo voto popular, são quem personaliza a responsabilidade e a transparência perante o povo: prefeito, governador e presidente. O presidente é a figura pública dominante, a que realmente se comunica com a massa nacional e gera consequências eleitorais. O eleitor brasileiro, em seu estágio atual de amadurecimento, vê no presidente da república aquele que ele pode responsabilizar pelos feitos do governo.
Deputados federais e senadores, os quais no semipresidencialismo escolheriam o primeiro-ministro e deveriam formar as maiorias para que as políticas públicas fossem aprovadas e implementadas, são vistos como pela população? É difícil crer que a massa de eleitores brasileiros compreenda de forma clara a relação entre seu voto para o Congresso e as políticas públicas que chegam à sua porta. Um hipotético semipresidencialismo no Brasil deixaria o eleitor praticamente cego sobre quem responsabilizar quando não gostasse das políticas públicas realizadas ou ausentes.
Qual seria a posição do eleitorado diante de um primeiro-ministro? Imagine ele alegar que o Legislativo não lhe apoia? Como o eleitor compreenderia isso? É de se confiar num processo de amadurecimento do eleitor que escolheria mais criteriosamente o Congresso ou prever um alheamento diante da intocabilidade do poder, da obscura relação entre o voto popular e o governo formado?
Por fim, a história nos ensina que o Brasil convive secularmente com presidentes mais modernizadores que o Congresso com o qual interagiram. Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, João Goulart, Fernando Henrique, Dilma Rousseff e Lula foram (e ainda é, no caso de Lula) políticos com posições ideológicas mais modernizadoras que seus contemporâneos Congressos. De fato, já é clássica a visão que no Brasil as reformas vêm do presidente e são freadas pelo Congresso.
Em perspectiva ampla, a industrialização e a construção dos direitos sociais e políticos, à exceção da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, foram impulsionados pelos Presidentes da República e não pelo Congresso. E o que é inerentemente ligado à accountability referida antes, a escolha desses presidentes foi feita pelo povo, que na corrida eleitoral criou expectativas sobre eles, acompanhou seus mandatos e em alguns casos pôde puni-los ou recompensá-los dentro do próprio sistema eleitoral como as reeleições de Getúlio Vargas (tecnicamente uma volta ao poder, não uma reeleição), FHC, Lula e Dilma.
A considerar a história brasileira e o perfil de nossa classe política, deve-se então ter muita cautela com o argumento elegante, mas distante, de que outro sistema de governo nos diminuiria as crises e problemas. Como se vê na responsabilidade da classe política, na cultura popular do voto e na ideologia dos nossos líderes máximos desde os anos 1950, deixar nas mãos do Poder Legislativo a escolha do chefe de governo pode gerar maior insulamento das elites, menos transparência e responsabilidade das autoridades, mais apatia cívica e distanciamento do povo em relação à política e uma predisposição muito menor para as mudanças e transformações que o Brasil precisa. Não nos adiantaria de muita coisa governos sem crise mas com pouco ímpeto de transformação social e econômica.
O texto acima expressa a visão de quem o assina, não necessariamente do Congresso em Foco. Se você quer publicar algo sobre o mesmo tema, mas com um diferente ponto de vista, envie sua sugestão de texto para [email protected].