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Cezar Britto
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MUNDO
20/02/2025 | Atualizado às 11h56
Era comum - dos bares às salas de aula - afirmar que a Democracia habitava as terras estadunidenses, não obstante os sangues indígenas e mexicanos derramados durante a conquista do celebrado "sonho americano". Nessas conversas, apaixonados debatedores não consideram relevante o fato de que o Tio Sam não reconhecia como aplicável aos seus filhos armados as jurisdições do Tribunal de Haia, da Corte Interamericana de Direitos Humanos e da Comissão de Direitos Humanos da ONU, embora exigisse que os países asiáticos e africanos a elas se submetessem.
Igual raciocínio argumentativo poderia ser aplicado ao Patriot Act, instrumento legal que permite às autoridades estadunidenses, unilateralmente, invadir as fronteiras de qualquer país e, impunemente, matar, prender, sequestrar, grampear, bisbilhotar ou praticar ato entendido como lesivo à Democracia Estadunidense.
Ainda que tais atitudes pudessem parecer autoritárias para os não nascidos nos EUA, os forasteiros não se consideravam vítimas, alienígenas ou súditos de um império onipresente, onisciente e onipotente.
Longe de condenar o poderoso Leviatã do Norte, admirava-o. Afinal, os "irrelevantes" crimes contra a humanidade poderiam ser perdoados em razão do "relevante papel" dos EUA na defesa da paz mundial. O efeito colateral seria uma espécie de cota justa para retribuir ao Xerife do Mundo pelo oneroso encargo de defender a liberdade, o multiculturalismo, a universalidade dos direitos humanos, o livre-comércio internacional e outros bens tidos como fundamentais.
Em um desses animados colóquios, lembrei a eles de uma advertência do iluminista Benjamin Franklin, apontado como grande e lúcido líder da Revolução Estadunidense da Independência (1776). A lembrança do nome de um dos "Pais Fundadores dos Estados Unidos" não me serviu de para-raios, mesmo quando ameaçadoras tempestades que já atormentavam o próprio pedaço norte da América. Acusaram-me, em resposta, da velha suspeição de ser apenas um despeitado "rapaz latino-americano". E antes que eu esqueça de registar, eis a frase do contestado Benjamin: aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança.
Desde a ascensão da dupla Trump/Musk à presidência compartilhada dos EUA, não voltei a conversar com os meus animados defensores da Democracia Estadunidense. Não sei o que pensam da retirada dos EUA do Acordo de Paris, da OMS, do Conselho de Direitos Humanos da ONU, da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA) e do corte de ajuda financeira para a política de redistribuição de terras da África do Sul, além do fechamento da Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e a adoção de sanções contra o Tribunal Penal Internacional (TPI).
Desconheço se aprovam a expulsão dos palestinos de Gaza e a transformação da sua milenar terra em um resort de luxo para gozo dos bilionários brancos. Ignoro se concordam com a anexação do Canadá, da Groenlândia, do Panamá e da posse nominativa do Golfo do México. Eu dessabo se abonam a política de chantagens e ameaças tributárias ao livre-comércio entre os países, assim como as humilhantes formas em que são deportadas ou aprisionadas na famigerada Guantánamo as pessoas que acreditavam no "país das oportunidades".
Confesso, enfim, que gostaria de reencontrá-los. Ainda mais agora, que a própria Democracia interna dos EUA parece frágil para conter os arroubos autoritários que não se envergonham da destruição do Estado, que agora encerra os programas de diversidade de gênero, retira o financiamento de disciplinas que abordam o racismo e a igualdade de gênero nas escolas, abole o laicismo e demite milhares de servidores públicos não alinhados ao trumpismo - entre eles os promotores de Justiça que investigaram o próprio Trump e os agentes do FBI que apuraram a tentativa de golpe do anistiado 6 de janeiro de 2021.
Talvez, solvendo suas bebidas nos restabelecidos e poluentes canudos de plásticos, continuem idolatrando os mesmos deuses que habitam parte da América do Norte. Talvez mudem de discurso e defendam uma Democracia mais real, sem donos, inclusiva, plural. Talvez culpem a própria Democracia por suas contradições e fragilidades, citando o admirável Aldous Huxley, quando lembrou que, às vezes, "a democracia permite que criaturas abomináveis conquistem o poder".
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