[caption id="attachment_225407" align="alignleft" width="285" caption="Viaduto do Chá, em São Paulo. Fico com o Tom Zé e sua oportuna ressalva: "porém com todo defeito/ te carrego no meu peito""]

[fotografo]Oswaldo Corneti/Fotos Públicas[/fotografo][/caption]Uma das minhas mais remotas lembranças é a de, com três anos e três meses de idade, assistir com meus pais às comemorações do IV centenário de São Paulo, no vale do Anhangabaú.
Era começo da noite e o melhor lugar que encontramos, em meio à enorme multidão, foi no viaduto do Chá.
O que mais me encantou: a chuva de aviõezinhos de papel laminado, que eram atirados do topo de edifícios e lampejavam à luz dos holofotes. Que criança não se deslumbraria?
Mas, o ufanismo paulista nunca me contagiou. Locomotiva do Brasil - e daí? Quando pequeno, não dava muita importância ao que estava além de minhas experiências e conhecimentos. Depois, entendi muito bem o que aquilo significava mas, cabeça feita por Monteiro Lobato, preferia os artistas e pensadores aos ganhadores de dinheiro. Sou assim até hoje.
Minha mãe, coitada, acreditava que ter-se industrializado antes fazia São Paulo melhor do que o resto do Brasil. Em suas tentativas canhestras de lançar-se como compositora, criou um mostrengo que, felizmente, nunca ninguém gravaria: "Este São Paulo é um colosso/ Tem cafezais e algodão/ Sua indústria assombra/ É a maior da nação/ Venha assistir a sua luta incessante/ para ver que tem o paulista/ fibra de herói e de bom bandeirante..."
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Na Mooca dos anos 60, os jovens projetavam para si carreiras de engenheiros, médicos, advogados e que tais - pois os pais incutiam-lhes desde cedo o sentimento de dívida: tendo a oportunidade de estudar que a eles próprios não fora dada, deveriam chegar aonde gostariam de ter chegado. Para quê? Para terem bons empregos, casas, carros, quinquilharias.
[Eu percebia claramente no meu pai - que começou a trabalhar aos 11 anos de idade no Crespi e passaria os 45 anos seguintes no mesmo prédio, embora com patrões diferentes - o sonho inconfessado de me ver na pele do imponente ingegnere daquele gigantesco cotonifício. Mas, deu-me a liberdade de escolha e aquele papel eu não me sentia talhado para desempenhar.]
Até pensei em me tornar engenheiro químico, mas fascinado pelos cientistas loucos dos filmes de terror e não por ambições materiais. Aliás, nunca as teria.
Estudar no Ginásio Estadual (depois Colégio) MMDC não me fez entusiasta da Revolução Constitucionalista de 1932, embora a escola tentasse nos incutir os valores correspondentes. Veteranos vieram algumas vezes fazer palestra para nós, medalhas balançando nos peitos. Mas, caindo aos pedaços, pareciam mais caricatos do que heroicos.
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Uma jovem e desejável professora de música chegou a criar um hino que começava assim: "Nós somos os estudantes/ Que só chegaram depois/ Dos gloriosos instantes/ De julho de 32/ Herdamos seu heroísmo/ A sua tenacidade/ O seu gesto de civismo/ Defendendo a liberdade". Ela e minha mãe formariam uma boa dupla.
Ao me tornar revolucionário, engoli sem pestanejar a versão que os historiadores ligados ao PCB difundiram e prevalece até hoje na esquerda, de que a Revolução Constitucionalista não passara de um movimento orquestrado pela oligarquia industrial-cafeeira de São Paulo.
Mas, depois da passagem pelos porões da ditadura militar, passei a ver com outros olhos os regimes que detêm poder de vida e morte sobre os governados, concluindo que nada, absolutamente nada, justifica que seres humanos sejam submetidos àqueles horrores que eu sofrera e presenciara.
E, lendo historiadores mais isentos (o stalinizado Partidão precisava provar que estava e sempre estivera certo, até ao apoiar ditaduras fascistoides como a de Vargas), percebi que a revolta contra o governo ilegítimo era generalizada entre a classe média paulista.
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Os quatro do MMDC, mais o que morreu logo depois (Orlando de Oliveira Alvarenga) e não foi celebrado como Marins, Miragaia, Dráuzio e Camargo, eram simples estudantes, nem de longe pertencentes à aristocracia reacionária. Há de tudo numa luta dessas, mas eu diria que o anseio por liberdade pesou mais do que a defesa de privilégios. E é inconcebível a esquerda, sob quaisquer subterfúgios, alinhar-se com despotismos.
Não que inexista conservadorismo e reacionarismo em São Paulo. Evidentemente, há. Percebe-se isto até no esquecimento a que são relegados episódios tão marcantes como a grande greve de 1917, varrida da memória paulista e paulistana. E são duros de engolir os cinco mandatos consecutivos do PSDB no governo estadual, marcados por episódios chocantes como o da
barbárie no Pinheirinho. Mas, exageram os que maximizam a importância daqueles gatos pingados que, nas manifestações pró-impeachment na avenida Paulista, pedem a volta da ditadura; os nostálgicos do arbítrio são exceção irrisória, jamais regra.
A Mooca proletária dos meus verdes anos deixou de existir, hoje os novos ricos tomaram conta. A avenida Paes de Barros virou um boulevard de bancos e empresas com instalações faraônicos. Os marcos do meu passado viraram pó que o vento do tempo espalhou.
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Ainda acontece alguma coisa no meu coração quando cruzo a Ipiranga com a São João, apesar da visível decadência do centro velho, do desfilar de zumbis do crack e marginais, de o cine Ipiranga não existir mais, de o Marabá ter virado colmeia de salinhas malcheirosas e o Metro, templo da fé mercantilizada.
E não gostaria, como no pesadelo bizarro de Arnaldo Baptista, de ver uma bomba H destruindo São Paulo.
Mas, o encanto há muito passou, até porque não vejo mais aviõezinhos de papel jorrando do alto dos edifícios...
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