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Arquitetura
13/4/2025 14:00
Brasília é a expressão máxima do urbanismo modernista e do fordismo uma cidade concebida prioritariamente para automóveis e não para pedestres. Surgiu numa época em que o barril de petróleo custava apenas três dólares, e as emissões de carbono ainda não figuravam entre as preocupações globais. O que frequentemente permanece à margem da narrativa dominante sobre sua criação é o papel significativo desempenhado por mulheres arquitetas e urbanistas, que contribuíram para o planejamento, a experimentação e a reflexão crítica em torno do projeto da capital.
O Plano Piloto, idealizado por Lúcio Costa, com avenidas monumentais cortando vastos espaços abertos, priorizou a funcionalidade e o fluxo automotivo, mas frequentemente ignorou as complexidades do urbanismo em escala humana. As vias foram construídas antes das casas e dos espaços públicos, dando origem ao famoso dito de que os habitantes de Brasília são feitos de cabeça, tronco e rodas.
Diferentemente de cidades que evoluem organicamente, Brasília foi meticulosamente planejada e construída em apenas 41 meses (19561960) um feito extraordinário possibilitado pelo trabalho de dezenas de milhares de candangos. Esses trabalhadores enfrentaram temperaturas extremas, condições de moradia precárias e jornadas intensas para dar vida à capital futurista.
Unidade de Vizinhança São Miguel
Mayumi Watanabe era uma jovem arquiteta ousada, que desafiava as normas predominantes do urbanismo modernista de Brasília. Seu projeto para as torres da Unidade de Vizinhança São Miguel refletia tanto um olhar crítico quanto um compromisso visionário com a inovação social e espacial. Curiosamente o projeto executivo das torres foi desenvolvido por ela em parceira com seu marido, Sérgio Souza Lima. Durante anos, no entanto, a autoria foi atribuída exclusivamente a ele sendo que Mayumi, quando creditada, era reconhecida apenas como colaboradora do projeto que desenvolveu em sua dissertação de mestrado Aspectos da Habitação Urbana.
Arquitetas que Influenciaram Brasília
Entrelaçados à narrativa dominante da criação de Brasília, ecoam protagonismos silenciosos por muito tempo negligenciados de mulheres cujas contribuições arquitetônicas e intelectuais foram marcantes na prototipagem bio-cultural-espacial da cidade. Mais recentemente, o coletivo Arquitetas (In)Visíveis, com apoio do IAB-DF (Instituto de Arquitetos do Brasil - Distrito Federal), vem resgatando estas trajetórias e amplificando legados ricos em singularidade. Esse trabalho tem impulsionado uma reavaliação mais inclusiva e precisa do legado arquitetônico de Brasília, reconhecendo a diversidade de perspectivas que ajudaram e ainda ajudam a moldar a cidade.
Entre essas mulheres visionárias estava a arquiteta e urbanista Mayumi Watanabe Souza Lima (19421994), que enxergava a arquitetura como um poderoso instrumento de transformação social. Se o plano de Lúcio Costa era enraizado na ideologia de que a ordenação do espaço urbano poderia resolver as desigualdades sociais, Mayumi destacava suas falhas estruturais sobretudo a ausência de espaços que favorecessem a interação social e a acessibilidade.
Para ela, as superquadras, embora fundamentadas em ideais modernistas, acabavam por gerar ambientes impessoais e desconectados, que pouco contribuíam para o fortalecimento do senso de comunidade. Também questionava a eficácia dos pilotis os pavimentos térreos elevados defendidos por Oscar Niemeyer concebidos como áreas abertas e coletivas sob os edifícios residenciais. Na prática, porém, esses espaços muitas vezes permaneciam vazios e isolados, distantes da promessa de se tornarem verdadeiros lugares de encontro e vitalidade urbana.
Pedestrianização do Comércio
Outra voz crítica à visão monumental de Brasília foi a da arquiteta Doramélia da Motta, que questionava como as estruturas grandiosas e os amplos vazios urbanos frequentemente desconsideravam as necessidades cotidianas e as vivências reais dos moradores. Ela defendia um urbanismo mais íntimo, em escala humana centrado na convivência social e no bem-estar coletivo.
Essas ideias ganharam forma em um dos projetos mais controversos das áreas comerciais do Plano Piloto: o Comércio Local 205206 Norte, popularmente conhecido como Babilônia Norte uma referência aos Jardins Suspensos da Babilônia. Diferente do bloco comercial típico de Brasília, onde as lojas se voltam para as ruas de tráfego contínuo, o projeto inverte essa lógica ao propor uma alternativa mais centrada nas pessoas. As fachadas principais voltam-se para áreas verdes e para a superquadra residencial. Esta configuração fortalece a conexão entre os espaços comerciais e residenciais, prioriza a caminhabilidade e cria áreas acolhedoras para pedestres, favorecendo a convivência cotidiana.
Levando o Design Modernista para o Interior
Anna Maria Niemeyer também integra a narrativa que preenche a lacuna de gênero no modernismo brasiliense não apenas como filha de Oscar Niemeyer, mas como designer que deixou uma marca própria nos interiores e mobiliários dos projetos da capital. Suas criações garantiram que a visão modernista se estendesse para dentro dos edifícios, traduzindo em mobiliários e ambientes internos funcionais e esteticamente coesos. Sua atuação reforça o papel fundamental das mulheres não apenas na construção da cidade, mas também na concepção dos espaços interiores de vivência diária.
Essas mulheres, envolvidas tanto na construção quanto na evolução contínua de Brasília, desempenharam um papel essencial ao desafiar e ampliar uma narrativa arquitetônica marcada pelo protagonismo masculino. Suas perspectivas compõem um mosaico de intervenções urbanas lideradas por mulheres que vêm emergindo em várias partes do mundo como um movimento rizomático capaz de proteger e valorizar as experiências do cotidiano feminino em todas as etapas do planejamento urbano, dos planos diretores e códigos de uso do solo à criação de espaços que favoreçam a interação social e a acessibilidade. Suas vozes são indispensáveis para compreender Brasília como algo que vai além do legado de seus arquitetos mais celebrados.
O Paradoxo de Brasília
Brasília segue como um paradoxo: ao mesmo tempo em que simboliza o modernismo utópico, é também uma das capitais mais verdes do mundo, oferecendo 120 metros quadrados de área verde por habitante muito acima dos 12 m por pessoa recomendados pela Organização Mundial da Saúde. No entanto, apesar dessa generosa oferta de espaços abertos, a cidade ainda enfrenta desafios persistentes de habitabilidade e segregação social.
O trabalho de arquitetas e designers como Mayumi Watanabe Souza Lima, Doramélia da Motta e Anna Maria Niemeyer nos lembra que os ideais modernistas evoluem ao incorporar a perspectiva de uma multiplicidade de grupos demográficos idosos, jovens, crianças, pessoas com diferentes habilidades e identidades de gênero. Suas visões também apontam para um urbanismo de proximidade, no qual os moradores têm fácil acesso a todos os serviços e espaços necessários para viver, aprender, socializar e prosperar, tornando a cidade mais acolhedora e humanizada.
Visitar a arquitetura de Brasília com um olhar sensível de gênero é descobrir mulheres inventivas que fizeram e fazem a cidade. Foto May East
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