Réplica da Constituição Federal de 1988, em frente ao Congresso Nacional. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Política é a solução pacífica de conflitos. Conflitos perpassam as comunidades humanas e mais complicados são quanto mais complexas as sociedades. Antagonismos surgem na disputa por recursos escassos, na imposição de regras de comportamento e valores, ou pela simples busca pelo poder.
A democracia, por sua vez, avança um passo e promete que a política feita de acordo com seus termos não apenas solucione pacificamente os conflitos quanto permite que as partes interessadas manifestem suas posições. Mandar sempre foi mais confortável que obedecer, e o que a democracia trouxe foi o lenitivo da legitimidade aos que perdem as disputas e submetem-se, pois tanto sabem que sua posição foi ouvida - e poderá vencer em próxima ocasião -, quanto sua vida mantém-se preservada e apartada da rusga política - o quê, se voltarmos no tempo, sabemos que nem sempre aconteceu.
O presidencialismo que vivemos no Brasil consiste em um arranjo institucional em que há tensão permanente entre os poderes. Mais, há um necessário antagonismo entre eles para que a tirania seja mantida à distância. Em termos mais conhecidos, os freios e contrapesos são forças que um poder impõe diante de outro. Ainda, na pulverização de atores mais e menos poderosos dentro do Legislativo, Executivo e Judiciário, diversas coalizões formam-se a todo momento para aprovar algo, ou derrotá-lo, modificá-lo etc. O seio dessas coalizões processa conflitos ininterruptamente.
Então, hoje estamos vivendo conflitos demais na política brasileira?
Um estudo empírico interessantíssimo foi produzido por Saiegh (
Political Prowes ou Lady Luck? Evaluating Chief Executives). Nele o autor coteja forças sociais - aquelas que se forjam, organizam-se e agem no seio da sociedade - e ações institucionais - processos decisórios determinados por regras dentro do Legislativo. Em outras palavras, mede como se dão as conexões entre forças sociais e forças políticas no Legislativo. O autor mostra que os conflitos na sociedade ocorrem mais frequentemente em duas situações extremas: quando o Poder Executivo aprova a maioria esmagadora de seus projetos no Legislativo ou quando não aprova praticamente nenhum. Traduzido: quando uma força esmaga a outra no Legislativo ou quando se estabelece o impasse. Ao contrário, os conflitos sociais ocorrem em menor número quando o Executivo tem um sucesso razoável na aprovação de suas pautas. Também traduzido: o governo tenta muitas coisas, tem êxito em parte, em outras negocia modificações e em algumas é vencido. Em suma: quando o Legislativo é lugar de conflito regular, razoável, as forças sociais estão no máximo da "paz social".
Hoje a sociedade brasileira apresenta forte polarização, entendida como posicionamentos bastante diferentes e assumidos com forte intensidade em muitas questões importantes: educação de filhos, uso de drogas, política de gênero, uso de armas, combate à criminalidade, papel da religião na política e outros. Há uma força conflitiva latente na sociedade.
Voltando assim ao argumento de Saiegh, podemos dizer então que o relativo sucesso do Poder Executivo dentro do Legislativo, medido pelo número de projetos aprovados e vetos produzidos, acatados e derrubados (este Congresso em Foco já trouxe importante reportagem sobre isso), mostra que o Legislativo tem processado conflitos ao menos razoavelmente, tem funcionado como uma válvula de escape para os conflitos sociais. Não nos parece que estejamos nos extremos apontados por Saiegh: nem o governo vence tudo, nem há impasse geral.
Dessa forma, ao contrário do que se vê habitualmente na imprensa, o governo não está nas cordas quanto enfrenta um revés no Legislativo. Hoje o número de seus insucessos é razoável, parece aceitável tanto ao Executivo quanto aos seus opositores no Legislativo. Em verdade, não é saudável que um governo de centro-esquerda consiga impor integralmente sua pauta a um Legislativo eminentemente de direita como temos hoje. Os conflitos que vemos na imprensa não são o bicho mais feio que ronda o Brasil. Ao contrário, são da natureza comum da política.
O que anda escondido, e precisa ser dito às claras, é que parte da pauta latente ao conflito tem por essência uma negação à Constituição de 1988, principalmente no que respeita às liberdades individuais, ao estado laico, à proteção do meio ambiente, à relação do Estado com a sociedade e suas formas de solidariedade social (previdência, trabalho, justiça). As derrotas do governo, como regra, não têm consistido em regressão nessas agendas, mas sim são freios a avanços ou derrotas em questões já conflituosas como o marco temporal das terras indígenas. Com o jogo de forças hoje no Executivo e no Legislativo a desmontagem da Constituição de 1988 mantém-se em germe, muito pouco provável de ocorrer. O que pode mudar o cenário são as próximas eleições. Mas isso deixamos para outra conversa.
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