Com a autoridade de quem mandou 14 bicheiros para a prisão no Rio, em 1993, e exerceu a magistratura por 14 anos, a deputada Juíza Denise Frossard (PPS-RJ) diz que o Congresso Nacional cometerá crime de responsabilidade caso não apure a fundo as denúncias feitas pelo deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ). "Não investigar é falta de decoro", garante a juíza, que acompanhou de perto a fase inicial do depoimento prestado pelo presidente do PTB ao Conselho de Ética da Câmara anteontem. Durante quase 7 horas, ele confirmou que parlamentares teriam recebido dinheiro em troca de apoio ao governo nas votações.
A deputada será a representante do PPS na comissão parlamentar de inquérito (CPI) que irá apurar o esquema de corrupção nos Correios. Nesta entrevista exclusiva ao Congresso em Foco - concedida momentos antes de o deputado admitir ter cometido crime eleitoral -, a juíza classifica como consistente o depoimento do criminalista Roberto Jefferson e diz que, ao contrário do que alegam as lideranças do governo, ele não tem obrigação de apresentar provas. Isso, segundo ela, cabe à CPI, colegiado com poder de polícia.
"Indecorosa seria a atitude de quem varre para debaixo do tapete. Você quando vê um crime, o que faz? Corre para a polícia. Ele (Roberto Jefferson) não apresentou provas, mas ele tem um indício de prova, que é a questão dos Correios. Isso se deu. Agora, a questão das provas, ele individualmente não tem como investigar, porque não é polícia. Ele é um deputado, e tem imunidade parlamentar. Ele não está dentro da CPI. Quem é a polícia da Câmara? É a CPI, que tem poderes de investigação e de juiz", afirma.
Uma das fundadoras da organização não-governamental Transparência Brasil, de combate à corrupção, Denise aconselha o Planalto a atacar em três frentes para reduzir a percepção de que o governo é conivente com a criminalidade e, de quebra, melhorar a sua credibilidade: lançar luz sobre os processos decisórios, investigar e combater a impunidade.
Na avaliação da deputada, o governo se equivoca ao apontar a reforma política como alternativa para combater a corrupção no meio político. "O problema da relação espúria está entre ladrões, um bando de ladrões. Se você fizer a reforma política hoje e não alterar a composição dos ladrões, eles vão migrar de qualquer forma", diz, para, em seguida, emendar: "O que vai afastá-los é o voto. É o voto do cidadão que certamente nas próximas eleições vai ter um cuidado redobrado para escolher os seus representantes". A seguir, ela também faz uma dura crítica aos colegas que tentam acobertar a apuração dos fatos: "Político tende a achar que a sociedade é idiota".
"Se não entrar na extensão e profundidade das denúncias dele
(Roberto Jefferson), o Congresso se desmoraliza e, por meio de seus integrantes, comete crime de responsabilidade. Não investigar é falta de decoro"
Congresso em Foco - Com sua experiência de juíza, qual a avaliação a senhora faz a respeito do depoimento dado pelo deputado Roberto Jefferson hoje acerca das denúncias de pagamento de "mensalão"? São consistentes as alegações?
Juíza Denise Frossard - Há uma "acusação", entre aspas, contra ele por falta de decoro. Qual seria a falta de decoro? Seria ele ter acusado uma situação de corrupção em razão de um relacionamento espúrio, sujo, entre parte do Executivo e do Legislativo. Quem leva essa denúncia é um sujeito que cometeu uma falta de decoro, é indecoroso? Não. Indecorosa seria a atitude de quem varre para debaixo do tapete. Você quando vê um crime, o que faz? Corre para a polícia. Ele (Roberto Jefferson) não apresentou provas, mas ele tem um indício de prova, que é a questão dos Correios. Isso se deu. Agora, a questão das provas, ele individualmente não tem como investigar, porque não é polícia. Ele é um deputado, e tem imunidade parlamentar. Ele não está dentro da CPI. Quem é a polícia da Câmara? É a CPI, que tem poderes de investigação e de juiz. É um instrumento ímpar na República. Esse poder todo ninguém tem, a não ser o Congresso. Se não entrar na extensão e profundidade das denúncias dele, o Congresso se desmoraliza e, por meio de seus integrantes, comete crime de responsabilidade. Aí, sim, o Congresso terá uma conduta indecorosa. Não investigar é falta de decoro.
Mas o deputado Valdemar Costa Neto (PL-RJ) entrou com uma representação por ter se sentido ofendido. Caso não seja comprovada a denúncia do "mensalão", não caberia a cassação?
Mas eu não vejo essa situação. Eu vejo ao contrário: isso não é motivo para quebra de decoro. É uma situação decorosa. Se é verdade ou não (o que ele diz), isso são outros quinhentos. Eu estou falando em tese.
O que faltou a ele esclarecer?
Falta investigar. O que ele fez foi indicar. A indicação está feita, mas é preciso ir na investigação. Investigação é muito mais do que indicação.
Partindo dessas denúncias?
Partindo dessas indicações, feitas por alguém que tinha profunda identidade com o poder. Por causa disso, a denúncia me parece absolutamente verossímil.
"Há alguma dúvida de que é preciso começar a investigar?
Eu não tenho dúvida alguma. Desculpa, mas, se isso não for feito, nós estaremos descendo ladeira abaixo"
Mas partindo de uma CPI específica ou a dos Correios mesmo?
A CPI dos Correios, pois os fatos são conexos. O Supremo já decidiu isso inúmeras vezes. Quanto mais se abrirem comissões e investigações, mais se pulveriza e maior o risco de cairmos numa enorme pizzaria. Eu tenho medo disso. Há alguma dúvida de que é preciso começar a investigar? Eu não tenho dúvida alguma. Desculpe-me, mas, se isso não for feito, nós estaremos descendo ladeira abaixo.
Descem todos juntos, Executivo e Legislativo, ou só o Executivo?
Os dois. A relação é Executivo e Legislativo.
O fato de ele depor no Conselho de Ética não mistura as coisas? O depoimento não deveria ser feito diretamente na CPI?
Mas ele foi chamado a depor aqui, como também lá. Isso é de acordo com a vontade dele.
A senhora então descarta a cassação dele na comissão de Ética?
Por essa denúncia, sim. A não ser que fique provada alguma outra coisa. Mas pela denúncia que ele faz tão-somente, não. (Nota da redação: a entrevista da deputada foi concedida logo após a fase inicial do deputado Roberto Jefferson ao Conselho de Ética da Câmara, antes, portanto, de ele assumir ter cometido crime eleitoral ao não declarar informações à Justiça Eleitoral)
A senhora faz parte da CPI dos Correios e chegou até ser lançada pelo PPS à presidência da comissão. Qual deve ser a linha de investigação?
Eu prego a investigação transparente. Sou contra qualquer tipo de investigação feita nas cocheiras. A quebra do sigilo é uma coisa complicada, porque é preciso preservar o que é para ser quebrado ou não. Isso aí é outra história. A investigação é técnica.
"A Polícia Federal tem se comportado ultimamente com a observância do princípio da impessoalidade. Se ela romper
isso, ela será política. E aí ela se desmoraliza"
O deputado Roberto Jefferson disse que as investigações da Polícia Federal sobre os Correios são políticas, ao ressaltar que fatos e diligências foram atropelados intencionalmente. Tem fundamento a acusação dele?
Isso é fácil descobrir, mas eu não posso falar ainda, porque não vi a investigação da Polícia Federal. Mas a Polícia Federal tem se comportado ultimamente com a observância do princípio da impessoalidade. Isso é o que eu tenho visto. Se romper isso, ela será política. E aí ela se desmoraliza.
"Quem apostar nisso (falta de coragem dos parlamentares)
e politizar a CPI, transformando-a em um palanque é suicida, suicida político, suicida moral, e, politicamente, cairá no descrédito"
O deputado Roberto Jefferson disse que não vê coragem na maioria dos deputados para levar essa investigação adiante. A senhora acredita na coragem dos seus colegas?
Na CPI? Então são suicidas. Quem apostar nisso e politizar a CPI, transformando-a em um palanque é suicida, suicida político, suicida moral, e, politicamente, cairá no descrédito. Nada isso é permitido hoje. Hoje nós vivemos em tempo real. E você tem uma coisa hoje que é terrível, que lê os seus olhos, que lê a sua alma, que é a televisão. Todos que estão sentados em casa em frente de uma TV estão ali julgando você. Julgando o seu comportamento. Se você foi continente de conduta ou não. Se você quis jogar para a platéia ou não. Então é uma época diferente, do tempo real, muito interessante. Eu nunca esperei viver um momento desse.
A julgar por esse depoimento do Roberto Jefferson, o governo saiu com mais motivos para abafar a CPI ou para levá-la adiante?
Impossível deter uma explosão que teve início. O governo não pode deter nem abafar mais nada. Eu já achava errado o que ele fez. Ele deveria ter assumido a investigação não é de hoje, não. Foi lá atrás, com o Waldomiro (Diniz, ex-subchefe de Assuntos Parlamentares da Casa Civil, que foi pego negociando propina em março de 2004). Ele não deveria ter deixado dúvidas.
"Político tende a achar que a sociedade é idiota. E ele começa a usar palavras para esconder as idéias. Mas isso é a pior coisa que ele poderia fazer nesse momento"
Se o governo tivesse esclarecido o caso Waldomiro, com uma CPI, a situação não chegaria ao que é hoje?
Claro. Ele teria esclarecido. Não conheço melhor antídoto do que a verdade. E aqui eu me lembro de Bobbio (Norberto Bobbio, filósofo e jurista italiano, morto no ano passado aos 94 anos). Pouco antes de morrer, Bobbio foi inquirido por um jornalista, que descobriu uma correspondência dos anos 20 dele. Queria saber por que Bobbio tinha escrito na carta que nem ele nem a sua família tinham nada contra o fascismo. Ele foi confrontado contra o documento: 'O senhor escreveu isso?', perguntou o jornalista. 'É, foi eu sim', respondeu Bobbio. 'Outro no meu lugar não o faria', completou. Quer dizer, é a dignidade de você reconhecer toda sua vida. Todo o seu passado. Investigar tudo com clareza. A sociedade de hoje, volto a dizer, vive em tempo real. Político tende a achar que a sociedade é idiota. E ele começa a usar palavras para esconder as idéias. Mas isso é a pior coisa que ele poderia fazer nesse momento.
O governo está fazendo isso nesse momento?
O governo está tentando ainda abafar. Ele diz uma coisa e faz outra. Isso não ajuda. Toda a gente sabe disso. Se você vai ali na rua, todos sabem disso. Essa constatação minha, vem da rua, onde eu vivo.
"O problema da relação espúria está entre ladrões, um bando de ladrões. Se você fizer a reforma política hoje e não alterar a composição dos ladrões, eles vão migrar de qualquer forma"
A reforma política poderia mudar essa situação?
Olha, essa é uma pergunta curiosa. Surge a reforma política aliada à corrupção do relacionamento espúrio entre governo e Congresso. O problema da relação espúria está entre ladrões, um bando de ladrões. Se você fizer a reforma política hoje e não alterar a composição dos ladrões, eles vão migrar de qualquer forma. Então, veja: o nosso problema não é para ser misturado. Nós temos que aprimorar o nosso sistema, mas não é a reforma política que vai afastar os ladrões. O que vai afastá-los é o voto. É o voto do cidadão que certamente nas próximas eleições vai ter um cuidado redobrado para escolher os seus representantes.
Jogar a culpa exclusivamente no sistema político é uma saída cômoda, então?
É não saber quais são as causas. Tudo bem: você joga a culpa no sistema, mas esquece de combinar com os ladrões. 'Olha, eu mudei o sistema, agora não dá para ladrão, tá.' E ele continua a roubar. E o ladrão só se intimida com o combate à impunidade. Quando tem a impunidade ele fica assanhado.
"Não tem saída, não tem mistério, não tem coelho para se tirar da cartola. A receita é antiga mesmo e é a que se tem: luz sobre os processos decisórios, investigação e combate ferrenho à impunidade"
Há duas semanas pesquisa da Datafolha apontou que 62% dos entrevistados consideraram que o governo é condescendente com a corrupção. Como o governo pode diminuir a percepção de corrupção?
Tudo bem, mas a Polícia Federal está mostrando o trabalho dela. Ela não pode investigar o governo. Quem pode investigar o governo é o Congresso, porque o chefe da Polícia Federal é o ministro da Justiça, por mais impessoal que ela seja e tem sido. Mas evidentemente que ela não investiga o governo, nem o parlamento. Ela não chega nem perto. Quem investiga os poderes são os poderes. Então a forma de o governo melhorar a sua credibilidade é jogando luz sobre o que acontece. Não tem saída, não tem mistério, não tem coelho para se tirar da cartola. A receita é antiga mesmo e é a que se tem: luz sobre os processos decisórios, investigação e combate ferrenho à impunidade.