49% confiam e 25% confiam muito nas urnas, contrastando com a minoria de 24% que não confia. Apenas 2% dos entrevistados não sabe ou não quis opinar sobre o tema. Foto: José Cruz/Arquivo/Agência Brasil
Por Márlon Reis e Letícia C. S. Biondi*
A
pandemia do coronavírus trouxe à discussão a possibilidade do
adiamento das eleições previstas para este ano.
Em períodos antecedentes na história das eleições em nosso país, testemunhamos tanto uma manobra política para adiar a realização de eleições, como também um problema de ordem sanitária que culminou com o adiamento da posse de um presidente da República.
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Em setembro de 1918, deu-se início no Brasil à propagação de uma epidemia que, estima-se, tenha matado 50 milhões de pessoas no mundo inteiro: era a gripe espanhola.
A Câmara e o Senado permaneceram fechados por vários dias e o presidente Rodrigues Alves - que havia sido eleito em 1º de março de 1918 - contraiu a doença. Por conta disso a sua posse, inicialmente marcada para 15 de novembro daquele ano, teve que ser adiada. O presidente jamais assumiria o cargo, vindo a falecer em janeiro de 1919. O país teve que se submeter a nova eleição presidencial.
Durante o
período ditatorial iniciado em 1964, o interesse político do partido dominante fez com se desse o adiamento das eleições municipais marcadas para 1980. Interessada em dividir a oposição, a Arena, que dava sustentação partidária à ditadura instalada no país, apoiou uma reforma eleitoral a pretexto de facilitar a criação de mais partidos (Lei nº 6.767, de 20/12/1979). Punha-se fim ao bipartidarismo então vigente. Com receio de uma derrota desastrosa no pleito municipal, o governo militar articulou para que as eleições de novembro de 1980 fossem canceladas, alegando exiguidade de tempo entre a publicação da norma e sua aplicação. A votação só ocorreria dois anos depois, em 1982, em conjunto com a escolha dos novos governadores.
O país, desde que promulgada a Constituição Federal de 1988, também chamada Constituição Cidadã, jamais passou por circunstâncias semelhantes.
O anseio de evitar que o Sistema Democrático fosse ameaçado por mudanças casuísticas e bruscas, criadoras de desigualdades entre partidos e candidatos, foi erigido a patamar constitucional, pela incorporação a seu texto do chamado princípio da anualidade eleitoral, previsto no art. 16 da Carta Magna, que assim preconiza: " A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência".
Ficou estabelecida - no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT - qual seria a duração dos mandatos dos ocupantes de cargos eletivos à época da promulgação da Constituição Federal. Após esse período, as datas das novas eleições - estipuladas pelas Leis nº 8.214/91 (que tratou da eleição municipal de 1992) e 8.713/93 (referente às eleições gerais de 1994) - foram devidamente respeitadas.
Com o advento da Emenda Constitucional 16/1997, fixou-se que o sufrágio ocorreria sempre no primeiro domingo de outubro - e no último, em caso de segundo turno - do ano da eleição respectiva, a depender do cargo, o que até o momento vem sendo observado sem exceções. As eleições sempre foram realizadas nas datas fixadas pela Constituição de 1988.
A propósito, note-se que o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias determinou a realização de plebiscito para que o povo brasileiro escolhesse a forma e o sistema de governo que vigoraria no País. Ali se dispunha que a data em que se concretizaria essa forma direta de participação popular seria 7 de setembro de 1993. No entanto, por meio da Emenda Constitucional 2/1992, houve alteração, de modo que o evento ocorreu em 21 de abril de 1993.
Além disso, tanto o referendo das armas como o plebiscito para a criação do estado de Carajás sofreram mudanças nas datas em que se realizariam. Enquanto o Decreto Legislativo 780/2005 estipulava o referendo para o primeiro domingo de outubro de 2005, tendo esse ocorrido em 23 de outubro do mesmo ano, o DL nº 136/2011 determinava que o plebiscito ocorresse no prazo de seis meses a contar de sua publicação, em 27 de maio de 2011. Não obstante, isso só veio a ocorrer em 11 de dezembro daquele ano.
Como se vê, já aconteceram mudanças nas datas fixadas para dois plebiscitos e um referendo realizados no país nas últimas três décadas. Contudo, em período de normalidade democrática, jamais houve adiamento das votações quando estava em jogo o preenchimento de cargos eletivos.
Resta discutir se o princípio da anualidade, previsto no art. 16 da Constituição Federal, poderia impedir o adiamento do pleito para os meses de novembro ou de dezembro, como já se começa a discutir.
O fato é que referido princípio já teve a sua aplicação excepcionada diversas vezes pelo
Tribunal Superior Eleitoral e pelo
Supremo Tribunal Federal.
A Lei nº 11.300/2006, que introduziu medidas para redução dos gastos e aumento da transparência nos pleitos eleitorais teve sua aplicação naquele mesmo ano admitida expressamente pelo Supremo Tribunal Federal (ADI 3.741).
Em outro precedente, o STF decidiu que a criação de municípios em anos eleitorais igualmente não viola o disposto no art. 16 da CF (ADI 718).
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Merece transcrição parte da ementa do acórdão proferido na ADI 3.345. Ali se registra que "A norma consubstanciada no art. 16 da Constituição da República, que consagra o postulado da anterioridade eleitoral (cujo precípuo destinatário é o Poder Legislativo), vincula-se, em seu sentido teleológico, à finalidade ético-jurídica de obstar a deformação do processo eleitoral mediante modificações que, casuisticamente introduzidas pelo Parlamento, culminem por romper a necessária igualdade de participação dos que nele atuam como protagonistas relevantes (partidos políticos e candidatos), vulnerando-lhes, com inovações abruptamente estabelecidas, a garantia básica de igual competitividade que deve sempre prevalecer nas disputas eleitorais."
Como se vê, não cabe aplicar-se o art. 16 sempre e em qualquer hipótese, mas apenas naquelas em que a inobservância da regra da anualidade eleitoral se revele capaz de implicar em casuísmo e de impor danos a oposicionistas ou a grupos minoritários.
Não é disso que se cuida quando se trata da possível alteração da data originalmente prevista para os primeiro e último domingos do mês de outubro deste ano. Tratando-se de medida eventualmente imposta por razões de natureza sanitária, voltada a salvaguardar a higidez e a saúde e públicas, nada impede a sua adoção. Estes são valores que superam em magnitude o preceito contido no art. 16 da Lei Maior. A decisão, todavia, caberá ao Congresso Nacional, a quem compete aprovar Proposta de Emenda à Constituição que defina a nova datação adequada, desde que respeitada a duração quadrienal dos mandatos de prefeitos e vereadores impostos pelo inciso I do art. 29 da CF.
* Letícia C. S. Biondi é bacharela em Direito pelo Centro de Ensino Universitário de Brasília (CEUB), pós-graduada em Direito Constitucional Eleitoral pela Universidade de Brasília (Unb) e servidora da Justiça Eleitoral.
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