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Emanuel e Jaci entraram na casa de Olurum em silêncio. É que eles não queriam interromper o canto que Oxalá dedicava a seu pai. Sabiam que encontrariam o orixá amigo em êxtase naquele anoitecer de sexta-feira. Sempre é assim no dia da semana em que ele frequentava os terreiros que requeriam a sua presença divina.
Amava quando o terreiro - girando em roupas brancas ao som de atabaques e aderês - o saudava em cânticos coletivos:
Èpa Bàbá! Não fora diferente naquela sexta-feira. Oxalá estava muito feliz, pois passara todo dia em um terreiro de
candomblé na cidade baiana de
Senhor do Bomfim. E assim os amigos encontraram Oxalá girando, dançando e cantando:
Oní Sáà wúre
Oní Sáà wúre
Sáà wúr à??
Oní Sáà wúre o bé?è? rí o mó?
Oní Sáà wúre
Sáà wúr à?? Bàbá
Oní Sáà wúre o bé?è? rí o mó?.
E?e e Bàbá; Èpà Bàbá!
Kíkí orin mímó? àwon Òrì?à!
Axé!
-
Èpa Bàbá! Oxalá é o rei desse congá! - aplaudiu Jaci, também cantarolando.
- Sejam bem-vindos, amigos! A casa é de vocês! - sorriu Oxalá. - Gostaram do cântico em louvor ao poder supremo de Olurum?
- A letra é da etnia Kétu, não é? - perguntou Emanuel.
- É sim, Emanuel - respondeu Oxalá, sorrindo. - A sua onisciência está afinadíssima. Conhece mesmo todas as línguas faladas no mundo.
- Está em Gênesis 1:3 e João 1:3 que no princípio veio o Verbo, pois tudo foi formado pela Palavra poderosa de Deus - disse, enigmático, Emanuel.
- Pena que os homens não mais falem a mesma língua, não é rapazes? - perguntou, reflexivamente, Jaci. - São quase sete mil línguas diferentes no mundo, algumas até em extinção. A comunicação é um instrumento tão importante para solucionar os problemas da humanidade e eles não conseguem se falar.
- Mas nem sempre foi assim, amiga! - conformou-se Emanuel. - Você mesma sabe que no livro do Gênesis 11:1-9 encontramos a afirmação de que todos os homens e mulheres já falaram uma língua comum e exclusiva.
- Verdade, amigo! - concordou Jaci. - É a história da Torre de Babel. Jeová castigou os homens com a multiplicação das línguas porque eles, ambiciosos e pretensiosos, queriam construir uma torre cujo topo penetrasse no céu.
- Lá na
China dizem que a divisão da língua original fez com que o universo se desviasse do caminho certo - suspirou Oxalá. - E eles têm razão. Como a humanidade pode caminhar sem conversar entre si sobre os rumos a seguir?
- É mesmo uma questão complexa, Oxalá - refletiu Jaci. - Ao mesmo tempo que dificulta o diálogo, uma língua é também referência para um povo. Quando ela desaparece, desparace um pedaço da história, da
cultura e da identidade desse povo.
- O meu povo africano sofre muito com essa dominação linguística colonizadora - concordou Oxalá. - Os europeus impuseram as suas respectivas línguas quando exploraram a África. As línguas nativas foram criminalizadas ou acusadas de incultas, obrigadas a sobreviver na clandestinidade.
- E eu não sinto isso na própria pele? - interrompeu Jaci. - Aqui a única língua oficial é a portuguesa, apesar de quase trezentas línguas nativas continuarem sendo faladas no Brasil.
- Eu tenho muita esperança de que prolifere aquela ideia de uma língua internacional, neutra e que sirva de segunda língua falada de todos os povos - opinou Emanuel. - Assim teríamos um instrumento de diálogo que preserva todas as línguas, histórias e culturas do planeta.
- Boa lembrança, Emanuel! - exclamou Jaci. - A ideia do Esperanto como língua que pertence a todos os povos e não às nações, é uma grande sacada.
- Imaginem como seria fantástico para a humanidade poder escutar as vozes dos povos nativos que têm sido massacrados ao longo do tempo - reforçou Oxalá. - E aprender com as suas experiências, histórias e vinculações com as coisas da natureza.
- A virtude do Esperanto é inquestionável - ratificou Emanuel. - Mas uma virtude que tem atraído os velhos inimigos que no passado construíram a Torre de Babel.
- Verdade! Os que só escutam as vozes arrogantes que são afinadas com as suas próprias mediocridades - lembrou Oxalá. - Exú tem se queixado muito de que esses transloucados se recusam a ouvir a voz da solidariedade, o grito de dor que consome o seu vizinho, a berro da fome que a ganância causou ou o brado dos que denunciam a desigualdade estrutural.
- Exato, Oxalá! - concluiu Emanuel. - Eles estão construindo uma nova Torre de Babel, agora para cultuar o Ouro devorador da língua falada com o coração.
- O culto à arrogância, à vaidade e à presunção dos que se julgam superiores a outros - arrematou Oxalá. - Estes seguem querendo impor a sua língua aos demais como se fosse um reconhecimento à sua superioridade econômica, social, cultural e racial.
- E não é por falta de comunicação nossa - constatou Emanuel. - Meu Pai inclusive já disse a eles que "não vos enganeis: as más conversações corrompem os bons costumes".
- Não foi em Salmos que se disse: "Põe, ó Senhor, uma guarda à minha boca; guarda a porta dos meus lábios" - complementou Jaci, acostumada com os textos cristãos. - Acho que chegou a hora calar essas vozes desumanas e não espiritualizas.
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