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Gisele Agnelli
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MUNDO
19/3/2025 | Atualizado 20/3/2025 às 10:07
A forma como o governo Donald Trump está agindo parece não caminhar para uma ruptura aberta e explícita do Estado Democrático de Direito, como um golpe de Estado clássico ou o desrespeito direto a uma ordem da Suprema Corte. Em vez disso, parece operar por meio da reinterpretação e instrumentalização de leis arcaicas e dispositivos jurídicos, muitas vezes esquecidos ou historicamente descontextualizados, para restringir direitos e minar garantias democráticas.
O uso de legislação antiquada para justificar medidas autoritárias não é novo, mas ganha força quando há repressão seletiva e classificação de opositores como inimigos do Estado uma estratégia para criar um estado de exceção dentro do próprio arcabouço democrático. Em 2020, durante os protestos do Black lives Matter (Vida Negras Importam), Trump ameaçou invocar o Insurrection Act para reprimir manifestantes, classificando-os como "atos de terrorismo doméstico".
No governo Trump 2, a intenção é a mesma: reprimir dissidências políticas, transformando opositores em "ameaça à segurança nacional". Desta forma, Trump não precisa rasgar a Constituição, apenas encontrar o caminho legal para reinterpretá-la.
A estratégia de Trump é utilizar-se destas Leis antigas totalmente fora do contexto histórico ao qual foram criadas, mas que permanecem na Constituição americana. Constituição difícil de ser alterada, tanto para inclusões quanto para exclusões. A Insurrection Act e a AUMF (Autorização para uso de força militar sem necessidade de aprovação de guerra pelo congresso, uma lei da promulgada da época da Guerra civil e a outra do combate a Al- Qaeda) transformam manifestantes em insurgentes. A Alien Enemies Act de 1798, um dispositivo criado há mais de dois séculos para expulsar cidadãos de países inimigos em tempos de guerra, está sendo usada para deportar imigrantes sem julgamento.
O caso de Mahmoud Khalil, ex-estudante de Columbia, é o exemplo mais emblemático de como a democracia americana está sendo subvertida por dentro. Residente legal com green card, que é um passo antes da cidadania Americana, deveria gozar dos mesmos direitos constitucionais de qualquer cidadão, inclusive à liberdade de expressão expressa na primeira emenda. No entanto, sua deportação foi justificada sob alegações de associação com grupos terroristas, sem provas apresentadas. A Suprema Corte já decidiu que, a menos que haja prova de apoio material a atividades criminosas, expressar opinião política é um direito garantido. Veja, se o governo pode revogar um green card com base em opiniões políticas, qualquer imigrante se torna vulnerável à perseguição.
No governo Trump 2 até a Primeira Emenda, pedra angular da liberdade de expressão, pode ser relativizada, como no caso de Khalil, residente legal nos EUA, alvo de perseguição política sob a justificativa da segurança nacional.
Outro caso alarmante é o dos venezuelanos deportados sob a Alien Enemies Act. Trump usou esta lei para acelerar deportações em massa, tratando imigrantes como ameaças militares. O próprio Judiciário reagiu: o juiz James Boasberg bloqueou temporariamente a medida, destacando que os EUA não estão em guerra com a Venezuela. Mas a tentativa já revela uma tendência perigosa: a transformação da imigração em ferramenta de controle político, ignorando o devido processo legal.
A despeito da ordem judicial o avião com os Venezuelanos supostamente integrantes da gangue "Trem do Aragua" foram deportados para El Salvador este final de semana após a ordem expedida pelo Juiz. O Departamento de Justiça (DOJ) está argumentando que a ordem oral do juiz James Boasberg, que determinava que aviões em voo retornassem aos EUA, não tem força legal, já que sua versão escrita não continha essa especificidade.
O ponto central da defesa do DOJ é que apenas ordens escritas são juridicamente vinculantes, pois definem com clareza os limites de conduta permitida. Esse argumento é significativo, pois, se aceito, poderia permitir que a administração continue as deportações enquanto explora brechas processuais nas decisões judiciais. Essa decisão pode levar a novos desdobramentos legais e reforça o embate entre a administração e o Judiciário na definição dos limites do poder presidencial na questão migratória.
Em 20 de janeiro de 2025, primeiro dia de governo, Trump assinou a Ordem Executiva 14160, intitulada "Protegendo o Significado e o Valor da Cidadania Americana", buscando reinterpretar a cláusula de cidadania da 14ª Emenda para excluir do direito à cidadania crianças nascidas nos EUA cujos pais estejam em situação irregular ou com visto temporário.
A tentativa de Donald Trump de reinterpretar a 14ª Emenda da Constituição dos Estados Unidos, visando eliminar a cidadania por nascimento para filhos de imigrantes em situação irregular representa uma afronta direta a um princípio constitucional estabelecido há mais de 150 anos. A 14ª Emenda, ratificada em 1868, estabelece que "todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãs dos Estados Unidos e do Estado onde residem". Este princípio, conhecido como "jus soli" (direito do solo), tem sido fundamental na definição da cidadania americana.
A reação judicial foi imediata. Diversos estados e organizações de direitos civis entraram com ações judiciais contra a ordem executiva, argumentando sua inconstitucionalidade. Juízes federais em Massachusetts, Maryland e Washington emitiram liminares bloqueando a implementação da ordem, destacando que ela contradiz o texto claro da 14ª Emenda e precedentes estabelecidos pela Suprema Corte.
Diante desses bloqueios, a administração Trump recorreu à Suprema Corte, solicitando que as liminares fossem suspensas para permitir a implementação da ordem executiva enquanto o mérito é julgado. O governo argumenta que os tribunais inferiores excederam sua autoridade ao emitir liminares nacionais e que a atual interpretação da 14ª Emenda incentiva a imigração ilegal.
A decisão de levar a questão à Suprema Corte, mesmo após sucessivas derrotas em instâncias inferiores, reflete a estratégia da administração Trump de buscar uma reinterpretação judicial que legitime sua agenda de restrição à imigração. Com uma composição majoritariamente conservadora, há expectativas de que a Suprema Corte possa reconsiderar precedentes históricos sobre a cidadania por nascimento.
Essa é uma forma sofisticada de autoritarismo legalista, em que a autocracia é construída dentro dos parâmetros formais da democracia, utilizando dispositivos legais de maneira criativa para perseguir opositores, silenciar críticas e consolidar poder. O autoritarismo americano sob Trump não se dá pela destruição aberta do sistema, mas pela sua reinterpretação estratégica para concentrar poder. Ele não precisa rasgar a Constituição, basta saber como manipulá-la.
Esse modelo de subversão democrática, muitas vezes chamado de "autocratização por dentro", já foi visto em regimes como o de Orbán na Hungria, Erdogan na Turquia e Putin na Rússia. Nos EUA, a lógica é a mesma, mas adaptada às particularidades do sistema americano especialmente o culto ao excepcionalismo jurídico e à tradição constitucional.
Leia aqui a primeira parte do artigo.
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